Por Leonardo Wexell Severo, Raphael Sanz e Vanessa Martina Silva
“Todas as pessoas em Senkata, absolutamente todas, morreram por ferida de bala com disparos entre o coração e a cabeça. As tropas nunca tiveram o objetivo de dissuadir, tinham o objetivo de matar. Em Sacaba diziam que iam caçar os camponeses. Não houve enfrentamentos em nenhum dos dois locais, mas massacres que, pela quantidade de mortes, catalogamos tecnicamente como crimes de lesa-humanidade”. A denúncia é da advogada Nádia Cruz, Defensora Pública da Bolívia, que expõe nesta entrevista a gravidade dos crimes praticados pela polícia e pelo exército contra a população civil após a destituição do presidente Evo Morales, em 10 de novembro do ano passado.
Com mais de 300 páginas, o informe Crise de Estado, Violação dos Direitos Humanos na Bolívia, Outubro-Dezembro de 2019, que a Defensoria apresentou recentemente, descreve os crimes praticados pelos golpistas – que vão do uso excessivo da força aos abusos psicológicos e morais, incluindo a violência sexual -, que deixaram oficialmente mais de 35 mortos. As denúncias foram fortalecidas por informes especiais de organismos e organizações como o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, o Instituto de Terapia e Investigação sobre sequelas de tortura e violência de Estado, e a Clínica de Direitos Humanos de Harvard. A intensidade e profundidade das palavras reforçam a relevância das eleições do próximo dia 18 de outubro para a garantia da democracia no país andino.
A Defensoria Pública apresentou na semana passada o histórico informe Crise de Estado, Violação dos Direitos Humanos na Bolívia, Outubro-Dezembro de 2019, que descreve em mais de 300 páginas a terrível violência e impunidade gerada desde a ascensão da autoproclamada presidente Áñez. Senhora Nadia Cruz, de todos os inúmeros testemunhos, qual o que mais lhe comoveu?
Inicialmente gostaria muito de agradecer pela participação. Efetivamente os meios de comunicação alternativos são a voz, o canal de luta contra a mídia tradicional, espaço que se abre para denunciar a violação sistemática dos direitos humanos ocorrida no nosso país.
Me comoveu bastante porque estive dentro dos blocos de resistência em outubro de 2003, quando a Bolívia expulsou a Sánchez de Lozada (quando morreram 65 pessoas na Guerra do Gás). Sou de El Alto, então a forma como vivi isso foi diferente.
Há dois momentos que me marcaram bastante em relação às vítimas: o primeiro ocorreu em 20 de novembro, um dia após o massacre de Senkata.
Lembro de ter recebido uma chamada no dia 20, ao redor das sete da manhã, do padre da Igreja de Senkata. Um clérigo totalmente diferente da estrutura eclesiástica, da conferência episcopal enquanto tal, muito comprometido com o seu povo. E a única coisa que dizia era “defensora, podes trazer médicos forenses. Convencemos as famílias para que lhes façam as autópsias”.
E nos mobilizamos, convencemos o Ministério Público – muito acessível neste momento -, e vieram os profissionais do Instituto de Investigações Forenses. Sabíamos que a questão era complexa, porque era El Alto, pelo que havia passado, e sabíamos que era tudo muito difícil pelo caos que se vivia.
E começamos a entrar em Senkata, todo o caminho estava bloqueado. Fomos passando os cercos, um a um, e isso é o que ainda me comove: não havia gente selvagem, como nos diziam, não havia criminosos nem terroristas, eram homens e mulheres que não paravam de chorar. Tinham o rosto queimado, queimado com as marcas das lágrimas que tinham secado no sol como o de El Alto…
Tinham raiva, sim, raiva porque a mídia e o governo haviam dito que eram criminosos e que haviam se matado entre eles. E tinham raiva porque ninguém os ouvia e ninguém acreditava neles.
E seguimos entrando. Recordo que a uns 60 metros da igreja havia uma ponte que era quase impenetrável. E entramos. Não era impenetrável por haver barreiras ou por nada que pudesse afetar a integridade de uma pessoa, mas, porque homens e mulheres cobriam a totalidade da ponte. E todos não paravam de chorar, nada tendo em suas mãos que fosse agressivo.
Apenas tinham a voz rouca, rouca de tanto chorar. E uma só palavra: justiça! A única coisa que pediam era justiça. Nada mais. E quando se informaram quem éramos nós – pois a Defensoria foi a única instituição que havia saído no dia 19 para assinalar a ocorrência dos assassinatos, do massacre -, nos reconheceram e nos deixaram entrar.
E no momento em que o carro não podia avançar mais, precisei baixar no meio de toda esta quantidade de gente, a única coisa que faziam era nos dar as mãos, e chorar e dizer: acreditem, nos mataram, acreditem, estão nos perseguindo, acreditem não fizemos nada, por favor, não nos deixem sós. E só pediam e gritavam por justiça, justiça, justiça!
Quando consegui ingressar na igreja em Senkata tinha muita gente dentro, familiares recém-chegados imagino, espalhados pelo local. Totalmente abalados, já não gritavam. Se encontravam devastados. E a imagem mais forte era ver os corpos, não estavam em caixões neste momento, mas estendidos sobre os bancos em que se assiste missa. E lembro de ver no piso os charcos de sangue que haviam gotejado dos bancos o pouco que tinha lhes sobrado de vida.
O que pudemos fazer neste dia foi ficar até à uma da manhã e terminar todas as autópsias. Todas as pessoas, absolutamente todas, morreram por ferida de bala com disparos entre o coração e a cabeça. Nunca tiveram o objetivo de dissuadir, tinham o objetivo de matar. Isso foi Senkata.
Dias antes havia ocorrido Sacaba. Recordo que Nelson, que é o meu delegado em Cochabamba, me chamou e declarou: é terrível o que está passando e o que pode passar. Os camponeses querem entrar em marcha e não se sabe o que pode ocorrer – e, evidentemente, não se sabia o que podia ocorrer, estávamos em crise.
Nelson me falou: “acertamos com o comandante da polícia, Javier Zurita [nomeado pelos golpistas no dia 7 de novembro], e ele nos disse que [os camponeses] seriam desarmados. E foram. Disseram que haviam encontrado paus, dinamites, etc”.
Os policiais falaram que tinham desarmado todas as pessoas posicionadas na ponte Huayllani. E no dia 14 há uma reunião em que o comandante Zurita – eu quero reiterar porque ele tem que pagar pela sua responsabilidade por tudo o que aconteceu -, disse aos camponeses, numa mesa em que se encontravam instituições: “eu vou lhes caçar se seguirem com a ideia de entrar em Cochabamba”. Não disse vamos impedir, disse caçar.
Essa era a posição da polícia por isso a Defensoria afirmou que não havia nada o que negociar, pois a polícia queria caçar.
E não havia nada que dialogar. No dia 15 o comandante da polícia nos chamou, enraivecido, porque não havíamos nos prestado a fazer seu jogo de ir até onde estavam e deter a marcha. E começaram a mentir aos dirigentes, a mentir aos camponeses e dizer: “aguardem, esperem porque a Defensoria virá para passá-los, voltaremos a revistá-los e eles os passarão”.
Era mentira, estavam ganhando tempo para trazer mais tropas policiais, mais tropas militares, e começaram a disparar. O ministro Murillo disse que os camponeses haviam se matado entre eles porque tinham disparos no crânio, na nuca. Eles estavam correndo, fugindo da forma violenta como haviam atuado as forças. Não se mataram entre eles. E tanto em Sacaba como em Senkata não há um único policial ferido.
Em todo o período do conflito há dois policiais mortos: um, no trajeto que fazia de La Paz a El Alto, quando ia frear, morto por turbas, que existiram. Outro que morreu porque foi achado em um posto de controle por pessoas enraivecidas. Porém nenhum policial morreu em um contexto da operação conjunta.
Em relação à população não houve enfrentamentos. As tropas, sim, foram caçar: dez em Sacaba e dez em Senkata. Isso é o que vimos como Defensoria.
Para mim, foram massacres que, pela quantidade de mortes, catalogamos tecnicamente como “assassinatos com características de lesa-humanidade”. E isso não perdoamos a este governo.
No dia 10 de novembro, à noite, começaram a ocorrer manifestações com a renúncia do presidente Evo Morales. Manifestações violentas, sim, que se tornaram delinquenciais sim, absolutamente sim.
Acompanhe a entrevista em espanhol pelo vídeo:
Existia uma situação de terror na Bolívia, especialmente na população urbana, porque a polícia havia decido se amotinar dias antes e havia uma sensação de necessidade e urgência de segurança. E disso se utilizaram, de algo que é justo, porque as pessoas estavam totalmente desesperadas, apavoradas.
Porque além disso começou a circular a falsa informação de que os camponeses iriam vir para tomar as casas, já que dias antes haviam ocorrido a queima de casas de familiares e afins ao partido do governo anterior.
Depois ocorreram ataques a duas casas, a do ex-reitor da Universidad Mayor de San Andrés, que neste momento era parte do berço do Movimento Cívico, que estava mobilizado, e de uma jornalista, Casimira Lema, ambos atores políticos. Havia uma sensação de terror nesse momento e a gente exigia, pedia, chorava por segurança.
Então primeiro saiu a polícia e, no momento de dar segurança, começou a fazer algo que o ministro Murillo disse depois, assumiu uma ação de vingança institucional. E se jogaram contra quatro bairros de La Paz: Ovejuyo, Rosales, Pedregal e Chasquipampa (que haviam exigido respeito à Whipala, queimada dias antes pelos golpistas).
E foram ao extremo da zona Sul e mataram três pessoas. E não foi só a polícia, a polícia permitiu que pessoas com capacetes brancos [adotados como vestimenta pela classe média golpista], como foram identificadas, participassem conjuntamente e matassem outras três pessoas.
Isso também vivemos, porque no dia seguinte às mortes nós fomos buscar os corpos. Havia todo um cenário, toda uma orquestração contrária, porque as pessoas estavam justificando, pois os mortos eram considerados vândalos.
Este foi o discurso que o governo difundiu. Mas todas essas mortes não eram para nos dar segurança, para pacificar o país ou para o retorno da democracia.
O único objetivo destas mortes era consolidar o governo de Jeanine Áñez no poder, nunca foi para restabelecer a paz e a segurança.
Gostaríamos de aproveitar o que você está trazendo dessa forma tão dramática, com tanto sentimento, para perguntar: além desses massacres, havia um clima de terror, com a queima de casas, de estabelecimentos, com o assassinato de animais de estimação. Havia um terror psicológico. Gostaríamos de compreender como este clima, essa falta de resposta policial, ajudou a gerar o golpe e, também, depois do golpe, como isso influenciou na resposta cidadã ou na falta dela com o que veio depois, com o governo de Jeanine Añez?
Mostramos em um vídeo como foi realizado o motim policial. Um dos principais pedidos do protesto era a negociação de suas demandas, que eram justas ou era permitido democraticamente fazê-las. É claro que nós apoiaríamos também aquilo, mas se tornou político quando o motim policial pedia que houvesse um novo governo. Estava sendo gerado, a partir da polícia boliviana, um movimento político. Não vamos questionar como defensoria pública, se era correto ou incorreto.
Mas sim questionamos que o que gerou o motim foi, em uma primeira linha, se uma eleição cidadã, onde a cidadania que estava mobilizada, que sentia que deveria ir às ruas e reivindicar — protegido constitucionalmente seu direito de se manifestar totalmente. A polícia começou a protegê-los. Nos primeiros dias do motim, não aconteceu muita coisa.
Mas em 9 de novembro começaram a gerar uma espécie de perseguição, começaram as noites de terror. Em 9 de novembro começaram com o incêndio de casas, de pessoas que nós identificamos como familiares, no caso do ex-presidente, de familiares do ex-presidente da Câmara dos Deputados e seus parentes foram violados sexualmente.
Também foram geradas informações difusas porque também se identificou — e o informe o diz —, que ocorreram casos de abuso sexual contra universitárias que estavam chegando de Sucre para La Paz para apoiar o Centro Cívico. Não foram estupros, isso tem que ficar evidente. Porque o que gerou mais violência foi a notícia de estupros, mas não eram estupros, mas sim abusos sexuais.
Foi terror e no dia 10, diante de um cenário muito adverso, da renúncia do ex-presidente Morales começam essas manifestações que nem sequer era possível dizer que fossem em respaldo ao ex-presidente Morales, foi uma reação. E aqui outro componente muito forte desse conflito que não é muito visualizado: foi a reação à queima da Wiphala. Foi uma reação à entrada de uma Bíblia no Palácio. Como um símbolo central de um Estado, foi como retroceder, não sei se 500 anos, mas pelo menos se retrocede 10 anos.
Desde a vitória (de Evo Morales) que se assumia desde o Estado Boliviano, especialmente desde as nações e povos originários e camponeses, que havia que mudar ou transformar a República em um Estado Plurinacional, que incorporasse as nações e os povos camponeses e indígenas, não como uma população reconhecida, não como ornamento e não como uma população em situação de vulnerabilidade.
As NPIOCs (Nações e Povos Indígenas Originários e Camponeses) foram incorporadas na estrutura de tomada de decisões, de definições, de tomada de poder pelo Estado.
Levando em consideração que somos mais de 60% das pessoas que podemos nos identificar plenamente com uma NPIOC, isso é forte. E os discursos que já saíam, de retorno a uma República, significavam voltar a uma colônia, que subjugou os indígenas.
Uma colônia, que depois foi formalmente chamada de República, mas que reproduzia exatamente as mesmas relações de poder e a mesma forma como se consideravam as NPIOCs.
Nesse momento, do dia 10, quando ocorre a queima da Wiphala e o retorno da Bíblia, estavam marcando a nova forma de poder para os NPIOCs.
Isso foi determinante para que as pessoas acabassem sentindo a quebra do Estado e saíssem às ruas. Essas manifestações ajudaram o sentimento de insegurança que vínhamos experimentando desde o dia 8 e, mais fortemente, 9 de novembro.
Começaram a circular informações falsas de que essas manifestações eram tomadas ou queimas de casas nas cidades, ataques. Em muitos casos, a manifestação se tornou violenta ou havia grupos dentro das mobilizações que se tornaram violentos e criminosos. Começaram com a queima, por exemplo, de um lote de ônibus da Prefeitura Municipal, que pertencia ao município de La Paz.
Nós tínhamos uma certa empatia. Houve também o incêndio de duas casas, uma de um dos representantes da Conade (Comitê Nacional de Defesa da Democracia) e outra de uma jornalista e, claro, isso gerou medo. As pessoas então sentem necessidade de sair de suas casas para as ruas para esperar com trincheiras.
Foi gerado um quadro de terror generalizado porque também, mais tarde se viu, que do outro lado circulou a informação de que – apoiadores do governo – iam entrar nas cidades para tomar a terra, queimar os campos, invadir. Foram várias as informações falsas.
Então entre manifestações, diante de um rechaço ao retorno a uma possível República, de uma submissão das NPIOCs, dos atos criminosos que existiam naquelas noites, das informações falsas que começaram a circular e geraram uma maior polarização, ocorreram enfrentamentos entre os cidadãos que vivem em zonas rurais e os que vivem em zonas urbanas, o que gerou noites e dias de terror. Horas de terror.
Eu lembro que no dia 11, em particular, a Promotoria não deixou de funcionar. Nós fomos às oficinas e era uma situação de terror. Nós não tínhamos a quem recorrer: não havia Estado, não havia polícia, não havia ninguém que respondesse nos ministérios. Era o Estado de nada. É por isso que as pessoas e o governo transitório aproveitaram essa situação, essa polarização, para com essa sensação de insegurança dizer que nós nos odiamos.
Se você não pensa como eu, é contrário, eu posso te eliminar, vou justificar e te matar. Esse foi o dano que nos fizeram. Porque é aí que começam as intervenções. Primeiro, policiais, com guardas privados, depois vêm as operações conjuntas e, claro, diante de um clima de que não havia Estado.
Sobre essa questão da impunidade, uma coisa que fica muito clara é a ausência, por medo ou perseguição, dos próprios jornalistas – inclusive por conta do assassinato do jornalista argentino Sebastián Moro em 2019. Como acredita que essa falta de liberdade de expressão tenha colaborado com o crescimento do terror? E agora, em meio a um clima de ditadura, como a imprensa nacional se vê diante de um processo eleitoral em que o capital transnacional e as oligarquias locais mostram tanta força?
Pensando no ideal, o Estado tem a obrigação de combater a informação falsa, não através de perseguição, senão através de sistemas de apuração permanente e de verificação da informação.
Isso não implica um tema de censura ou de controle, mas sim, que numa situação de conflito ou de crise, o Estado atue para informar a população. Isso não existiu na Bolívia. Em nosso país ocorreu um outro fenômeno que é preciso ser informado e, por isso, colocamos no informe.
Os trabalhadores da imprensa sofreram agressões e não houve proteção estatal desde o início do conflito. A dinâmica é simples: um momento os meios de comunicação eram atacados por setores cívicos; esses setores cívicos diziam que não a imprensa não informava corretamente a respeito deles, entretanto, nada acontecia como consequência às agressões.
Depois do dia 10 [de novembro de 2019, dois dias antes de Jeanine Áñez ser formalizada como presidenta interina do país, os ataques que se dão aos trabalhadores da imprensa acontecem são originárias das organizações sociais que estavam mobilizadas, que diziam exatamente o mesmo que as organizações cívicas citadas anteriormente: que a imprensa não mostra e não diz o que está acontecendo.
E novamente não aconteceu nada. Ou seja, na verdade aconteceram as agressões físicas, fortes, antes do dia 10 e depois do dia 10, a diferentes meios de comunicação, por diferentes setores da sociedade.
Por isso, quando uma pessoa lê o informe, vê que os meios de comunicação afetados foram tanto os que apresentam linhas editoriais que se supõem afins ao governo anterior, como também os que se supõem afins às mudanças que o país passou em novembro.
Não há na Bolívia a garantia da liberdade de expressão e de imprensa, e assim não se garante que a cidadania tenha informação diversa, de distintas linhas, o que calou ou aprofundou a crise e os conflitos. Os meios de comunicação de diferentes linhas foram atacados por diferentes grupos, e sempre sob o mesmo discurso: “de que informem corretamente”.
Ou seja, necessitamos sistemas de proteção que assegurem a pluralidade e o acesso à informação. Isso continua sendo um problema na Bolívia, nesse momento. Só para dar um exemplo, um dos poucos jornalistas dessa etapa de “transição” que denunciou atos ilegais e de corrupção do governo transitório, foi perseguido pela polícia e pelo ministério de governo. Pressionaram sua família, seus companheiros de trabalho, e o meio de comunicação ao qual estava vinculado, cortando a publicidade estatal que recebia.
Então, a situação é muito grave. Eu, particularmente, como defensora, me preocupo com isso, pelas trabalhadoras e trabalhadores da imprensa. Como eles têm me dito, profissionais de diferentes meios de comunicação: “por favor, defensora, explique que nós não somos os donos dos meios de comunicação e não mandamos nas linhas editoriais, nós apenas cobrimos, mas não decidimos o que sai e o que não sai”.
Estamos imersos em uma crise enorme, que ainda não foi sanada, mas sim, aprofundada. Precisamos de um processo democrático.
Em uma entrevista que publicamos na última sexta-feira, com o sociólogo Juan Carlos Pinto Quintanilla, há uma crítica muito forte das forças policiais e armadas de que estejam assentadas nas bases de regimes anteriores ao Estado Plurinacional, remontando à época colonial. O que comentas dessa ideia, ela pode explicar um pouco do que está relatado neste trabalho? E pensando nisso, que tipo de proposta para a segurança do país possa romper com essa lógica para que o respeito aos Direitos Humanos se torne o assunto central?
No informe quando denominamos a crise de Estado, tratamos de fazer uma alusão ao que aconteceu com as instituições dentro do Estado. Foi gerado um processo de desinstitucionalização e deslegitimação que é muito anterior a outubro de 2019 e nisso, todos os setores têm de ser autocríticos e, no caso da polícia boliviana e das forças armadas, são parte das instituições de segurança interna e externa do país.
Mas além das críticas que possam existir agora, incluindo as duras críticas, especialmente em relação à polícia, ou as críticas duras que possam existir a outras instituições como o Executivo, o Legislativo, o Eleitoral, o Judiciário, etc., é necessário na Bolívia que assumamos um processo de paz. E essa é a proposta que nós estamos fazendo dentro desse informe.
Quando a presidenta enche a boca para dizer que pacificou o país, ela mente ao mundo, a Bolívia não foi pacificada. Retiraram os bloqueios e a mobilização e começou a repressão através das instituições. E incluindo instituições particulares com a permissividade do Estado. Mas começou uma situação de repressão e de medo. Então o que precisamos na Bolívia?
Acredito que o processo democrático é fundamental; ter um governo eleito pelas urnas. É necessário ter uma Assembleia Legislativa eleita pelas urnas, é necessário recompor os órgãos eleitoral, judicial e as instituições.
Mas quais serão os primeiros atos que o futuro governo irá realizar? Esse é o ponto. Esperamos que se instale, ou seja, que cheguem as eleições e que se respeitem os resultados, sejam quais forem eles. Dependerá muito disso.
Não podemos cair nesse discurso de ‘retorno’ ou de ‘vingança’. Não podemos cair numa situação de seguir com um discurso que odiamos a uns, porque somos ‘nós contra eles’, e continuar polarizando a nossa população. É necessário, sim, medidas estatais urgentes, porque nosso país não está bem em termos econômicos, sanitários, educacionais e etc., uma vez que esse governo transitório não se ocupou da gestão pública, mas basicamente assaltou as instituições, a fim de aparelha-las.
Muitos casos fortes de corrupção e autoritarismo foram registrados, especialmente entre os ministros que são os homens-fortes da presidenta. Essa questão ficará para depois das eleições, infelizmente não temos como cuidar disso antes, mas o que a população realmente precisa, até para poder lidar com tudo isso que virá, é iniciar um processo de paz.
Precisamos nos perdoar a todos, pois toda a população em determinado momento mostrou características de violência, discriminação e racismo.
Fomos quebrados enquanto sociedade; nos quebraram e nos deixamos quebrar, e assim entramos nessa lógica. Precisamos retornar ao debate mais bonito que já existiu na Bolívia, quando se falava das estruturas de poder, das maneiras de mudar o sistema de governo, quando pensávamos no Estado Plurinacional como um horizonte para se viver bem, em harmonia, e é isso que precisamos na Bolívia hoje, esse espírito.
É um processo longo, que precisa de unidade, coerência e vontade política que, nesse momento, infelizmente, não existe. Esperemos que quem vá assumir o novo governo entenda e pense nisso, e não numa tomada do poder com um fim em si mesma, como fizeram agora com esse governo interino, mas que pense na população.
Queremos agradecer muito suas considerações. Há uma última questão que eu gostaria de fazer sobre o informe. Vocês defendem a criação de uma Comissão da Verdade, mas, além disso, o que pretendem fazer para seguir adiante na construção desse Estado Plurinacional? De forma que possam superar esses racismos, preconceitos contra as mulheres de saia [mujeres de pollera, como são chamadas as mulheres que tradicionalmente utilizam a vestimenta tradicional indígena], Pachamama, a Whipala e tudo o que vimos a partir da queda de Evo Morales?
Eu reitero, em honra à verdade, que a crise que ocorre em nosso país não teve início em outubro, iniciou antes. A violência e o racismo mais forte e focalizado foram contra as NPIOCs. Quando vimos que nos haviam quebrado como sociedade foi quando as NPIOCS e setores relacionados a eles começaram a sofrer discriminações. Do outro lado, se deu com pessoas que poderiam ser do Oriente também.
Por isso que digo que precisamos de um processo de paz, precisamos de uma Comissão da Verdade que vai estabelecer um processo de Verdade e Justiça.
O informe defende, com base nas descobertas que fizemos, primeiro o questionamento dos processos de pacificação e a necessidade de construir um. Segundo que, nós como Defensoria Pública, no marco dos Direitos Humanos, não acreditamos e vamos recusar, sempre, que a paz seja construída com base na impunidade ou no esquecimento das graves violações dos direitos humanos.
Na Bolívia temos muita experiência na busca pela Justiça e isso me agradada como promotora. É necessário não apenas esclarecer o que aconteceu entre outubro e novembro em nosso país, é imprescindível que se encontrem os responsáveis e os corresponsáveis e que eles paguem por suas culpas. E se for Jeanine Añez [a responsável], que pague e que suas garantias judiciais e direitos fundamentais sejam respeitados, é claro. Mas têm que pagar pelos seus erros, isso não pode ficar impune.
Também acreditamos, como defensoria, que a polícia e as forças armadas bolivianas não podem se eximir da responsabilidade, como tem pretendido a presidência e seu gabinete. Eles deveriam, por sua conta, fazer uma espécie de reparação à população, identificar todos aqueles que participaram nessas operações conjuntas, porque eles sabem do armamento que utilizaram e a forma como utilizaram.
Os agentes secretos que eles tinham… E têm que se colocar à disposição para que a justiça possa dar uma resposta institucional no âmbito do Estado de Direito. É fundamental que na Bolívia, no caso da mídia, sejam geradas normas políticas que garantam sistemas de proteção para os meios de comunicação.
Porque é necessário que a importante tarefa de informar e comunicar para todas as pessoas seja garantida. E que se garanta a segurança dos trabalhadores e trabalhadoras da imprensa. É preciso recuperar efetivamente a liberdade de expressão.
É condenável que os governos de alguma forma condicionem as linhas dos meios de comunicação estatal e, pior ainda, quando na Bolívia uma boa parte dos recursos vêm da publicidade estatal. É preciso democratizá-la, para que democratizando a publicidade possamos democratizar a informação, podemos gerar informação diversa.
É fundamental que na Bolívia se recupere a institucionalidade. Se recupere, e acabe uma série de submissão do Sistema de Justiça. Como do órgão judiciário, do procurador-geral, do Ministério Público, que teve um dos piores papéis e isso ficará na história. É tão evidente a forma como eles têm se submetido aos interesses do atual governo para gerar processos de perseguição, que perderam a oportunidade de passar como um Ministério Público, como um sistema de Justiça independente.
O sistema de Justiça na Bolívia foi tão questionado e durante o governo transitório foi dada razão a esses questionamentos. Na Bolívia, propomos também que é necessário recuperar a independência, é necessário que a divisão dos órgãos do poder seja realmente efetiva e que a submissão seja apenas a Constituição, à lei. Esse é o horizonte utópico que defendemos como Defensores Públicos.
Oxalá tenhamos vida para ver o quão próximos podemos estar de tudo isso.
E, definitivamente, o Estado boliviano deve às vítimas fatais, pelo menos, um processo de reparação. E nos referimos não a uma compensação econômica, como dizem aqui, pois isso sequer se ajusta ao padrão internacional.
A Bolívia deve às 37 pessoas que perderam suas vidas, especialmente às 27 que foram sob as mãos do Estado, um mínimo de desculpas, minimamente o cuidado com os órfãos e minimamente restabelecer a vida que essas pessoas tinham. Muitos deles não estavam sequer dentro do conflito.
O Estado lhes deve um julgamento. Deve que os filhos podem ver com seus próprios olhos que o guarda que matou seu pai está atrás das grades. Isso é o mínimo que o Estado deve às vítimas.