Em entrevista a Aloísio Morais para o portal da CTB, o economista gaúcho Cássio Calvete fala sobre as tendências da jornada de trabalho no mundo moderno, o teletrabalho, o crescimento sustentável, as relações trabalhistas no universo capitalista, desemprego, escassez de recursos naturais e distribuição de renda. Calvete é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, doutor em economia social e do trabalho pela Unicamp, e trabalhou no Dieese por 27 anos.
Jornadas de trabalho menores podem salvar o mundo?
A redução da jornada de trabalho, seja dos trabalhadores autônomos seja dos trabalhadores heterônomos, não pode ser uma panaceia. Claro que é importante que as pessoas dediquem menos tempo ao trabalho para que tenham mais tempo para a família, para os amigos, para a sociedade e para si mesmo com atividades culturais, de lazer e de ócio. No entanto, para que a redução da jornada de trabalho melhore o mundo ela tem que vir associada a outros valores que melhorem a sociedade que vivemos, como a solidariedade, a empatia e a sustentabilidade ocupando o espaço do consumismo, do utilitarismo e do egoísmo.
Se todos trabalharem quatro dias por semana, a expectativa de vida, as desigualdades sociais, as emissões de carbono e a escolaridade poderiam melhorar?
Poderiam, mas como citado na questão anterior, teria que vir acompanhada da mudança de valores.
Qual é a tendência no mundo e no Brasil da jornada de trabalho na sua opinião?
Infelizmente da forma como as novas tecnologias vêm sendo utilizadas e associado ao crescimento do neoliberalismo e a completa desregulamentação dos Estados de bem-estar social e das leis trabalhistas, o que estamos assistindo é um movimento dual das jornadas de trabalho. Por um lado, algumas pessoas com jornadas extremamente extensas, particularmente os trabalhadores de plataformas digitais, onde boa parte do tempo dedicado ao trabalho não é remunerado (deslocamento, tempo de espera, procura por tarefas etc.). Por outro lado, pessoas desempregadas ou com jornadas parciais que são insuficientes para garantir uma sobrevivência digna.
A pandemia já está antecipando ou acelerando, de certa forma, mudanças nas relações do trabalho?
Sim, o crescimento do teletrabalho, do home-office e dos trabalhos em aplicativos (particularmente motoristas e tele-entrega) que já eram uma tendência, cresceram durante a pandemia.
O Brasil está preparado para mudanças mais acentuadas?
Creio que a sequência que vivemos nos últimos 20 anos, quando vivenciamos um período de diminuição da pobreza, diminuição da desigualdade e diminuição da miséria que ocorreu de 2003 até 2014 e, em boa parte dele, com crescimento econômico, onde o emprego formal estava no centro do desenvolvimento e que foi sucedido por um golpe que desregulamentou a leis trabalhistas prometendo criação de empregos e, consequentemente, melhores salários, o que não ocorreu. Na continuidade do golpe, um governo de extrema-direita que continua de forma muita acelerada com a destruição do estado de bem-estar social e a desestruturação do mercado de trabalho, com a falsa promessa de trabalho para todos e melhoria das condições de vida, mas que, na verdade, entrega o aumento da pobreza, da miséria e a concentração de renda – e isto tudo não é apenas retórica da minha parte, isso é o que mostram os dados do IBGE. Esse fracasso do golpe e das políticas neoliberais de desregulamentação das leis trabalhistas e do estado de bem-estar social torna mais fácil perceber a necessidade da construção de uma sociedade baseada na construção de valores mais fraternos, solidários e inclusivos.
Quando falo em fracasso das políticas neoliberais, digo isso porque o discurso do governo Michel Temer e do governo Bolsonaro é de que a política de desregulamentação propostas viriam para melhorar os empregos e melhorar a vida de toda população e, no entanto, o que os números do IBGE apontam é justamente o contrário.
A ideia de semanas de trabalho mais curtas aliadas ao crescimento sustentável pode ganhar força no Brasil?
Sim, em boa parte essa pergunta já foi respondida na resposta anterior.
Acrescento apenas que essa luta por um crescimento sustentável vem ocorrendo pelo menos desde os anos 1970 e é um movimento mundial que também se expressa no Brasil. Porém, é importante deixar claro que o crescimento sustentável ou a importância do decréscimo econômico como alguns sustentam são incompatíveis com o capitalismo tal qual ele está estruturado: baseado no consumismo, na criação artificial de necessidades, no egoísmo, no utilitarismo. Portanto, aqueles que desejam um crescimento sustentável ou mesmo decréscimo econômico estão lutando contra forças muito poderosas que se beneficiam do atual estágio do capitalismo. Estamos falando das grandes corporações, especuladores, acionistas etc. Quando se fala em desenvolvimento sustentável, não podemos falar apenas da reciclagem de produtos para decoração, economia de água, luz, papel, temas que a grande mídia adora. Não que isso não seja importante, isso é importante. Mas também é importante, e isso a grande mídia não fala porque vai contra os seus interesses, que não se compre um celular novo a cada lançamento, que não se compre uma camisa nova porque a cor da moda mudou nesse verão, que a sociedade não permita tão facilmente a obsolescência programada dos bens duráveis.
A redução da jornada pode ser uma solução para aliviar o desemprego?
Sim, pode. Quando falamos em redução da jornada dos trabalhadores
heterônomos ela pode ser um instrumento útil se adotada em período de crescimento econômico e acompanhada de outras medidas que potencializem seus resultados. Seria importante para a geração de novos postos de trabalho que ela fosse significativa e acompanhada de maior limitação da utilização de horas extras, maior controle sobre a intensidade do trabalho, regras mais rígidas no banco de horas, melhoria na fiscalização, maiores restrições às contratações atípicas (contrato por tempo determinado, cooperativas de trabalho, estágio, trabalho temporário, pejotas, falsos empreendedores) etc.
Quando falamos da redução da jornada dos autônomos também tem que vir associada à manutenção dos rendimentos. Nos dois casos é importante a mudança de valores da sociedade.
É compatível reduzir jornada sem reduzir salário?
Sim, e essa é a única forma da criação de um círculo virtuoso da economia que de fato geraria novas ocupações. A redução da jornada de trabalho geraria novos postos de trabalho, empregaria mais pessoas. Esse aumento de pessoas empregadas geraria aumento de demanda, aumento da produção, aumento de venda, aumento de renda e do lucro.
O empresário brasileiro estaria preparado para adotar a redução de jornada?
A primeira e maior dificuldade para a implantação da Redução da Jornada de Trabalho se manifesta historicamente, e é justamente a resistência do setor empresarial à mudança. Apesar dos benefícios macroeconômicos da medida, a resistência empresarial ocorre em virtude da sua ideologia liberal e da sua visão fragmentada da economia. A ideologia liberal manifesta-se na oposição à intervenção do Estado nas relações no mercado de trabalho. Quanto menor a intervenção do Estado, maior o poder discricionário dos empresários e maior o poder político.
Especificamente no caso da redução da jornada de trabalho, ela interfere diminuindo o controle empresarial sobre o tempo de trabalho e na distribuição dos ganhos de produtividade em favor dos trabalhadores. A visão fragmentada da economia impede a visualização dos benefícios advindos, no longo prazo, do aumento da demanda agregada. A percepção empresarial atém-se apenas ao impacto inicial, numa visão de curto prazo, de aumento de custo para sua firma.
Você acredita que a redução de jornada poderia contribuir para a redução das mudanças climáticas e na redução do consumo e para a distribuição de renda?
Sim, acredito que esse seria um passo importante para a mudança de valores de cada um e da sociedade. As pessoas tendo mais tempo poderão ficar mais com a família e amigos, curtirem atividades culturais, lazer ao ar livre e em contato com a natureza.
Qual seria o peso da escassez de recursos naturais no mundo?
O capitalismo, que ganhou importante sobrevida com o Estado de bem-estar social e o compromisso fordista/socialdemocrata de distribuição dos ganhos de produtividade após a segunda guerra mundial, vendia como meta/sonho para o mundo todo atingir o American way of life. Ou seja, um estilo de vida norte-americano baseado no consumismo. Bom, hoje fica claro que o planeta não suporta que o mundo todo consuma a mesma quantidade de recursos que os habitantes dos EUA consomem. Se cada um dos 1,4 bilhão de habitantes da China, se cada um dos 1,3 bilhão de
habitantes da Índia, mais toda população da África, da Ásia e das Américas forem integrados à sociedade do consumo e consumirem a mesma quantidade de bens que os norte-americanos consomem o Planeta não suportará.
Estamos, então, muito distantes da sociedade do lazer e do crescimento sustentável?
Acho que ainda estamos longe, os valores do capitalismo ainda são fortes e
hegemônicos. Mas, felizmente, já podemos perceber, principalmente nas novas gerações, um crescimento da consciência ecológica e um maior desapego aos bens materiais. A questão é quanto tempo levará para que esses valores se transformem em ações e que tanto esses valores quanto as ações sejam hegemônicas. Cada ação que contribua para a aceleração desse processo é importante.
Como isso pode contribuir para o crescimento do turismo, por exemplo, e outros setores?
Todas as atividades que tragam prazer às pessoas e que sejam majoritariamente baseados em serviços e que não consumam bens físicos deverão crescer no futuro. O prazer das pessoas deve estar mais associado a emoções originadas de experiências pessoais e convivência com outras pessoas e não pelo consumo de bens. É claro que o turismo também consume produtos, combustíveis, veículos etc., mas ele deve e pode ser feito sem o consumo de tantos bens. As atividades culturais como experiências gratificantes também devem crescer num futuro sustentável.
Você concorda que o decrescimento econômico faz parte do futuro da humanidade?
Acho que isso não é o mais importante, até porque decréscimo teria que ter um limite. O importante é que a sociedade tenha um modo de vida sustentável que não agrida o meio ambiente. Já existe um movimento que acredita que o mais importante para os países não é medir o crescimento econômico através do Produto Interno Bruto, mas medir o crescimento da felicidade das pessoas. Como experiência de medição importante e que já acontece e é feita para todos os países do mundo e que já tem uma metodologia consolidada é a mensuração do IDH – Índice de Desenvolvimento Humano. O IDH ainda leva em consideração o crescimento da renda, mas é um passo importante para não se considerar apenas o crescimento do PIB como o principal indicador de uma sociedade.
Nesse futuro onde o crescimento da produção e da renda não tem importância, mas sim o crescimento da felicidade, teremos superado o capitalismo e atingido um modo de produção superior. É claro que o fim do capitalismo não está próximo, mas todo passo em direção a uma sociedade melhor é importante e traz algum grau de melhoria na vida das pessoas já no curto prazo.