Por Marcos Aurélio Ruy, Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil
“O desgoverno de Jair Bolsonaro mais uma vez tenta se esconder sob o manto de uma falsa moralidade e baixa uma portaria que humilha as vítimas de estupro no país, obrigando-as a passar por procedimentos vexatórios para interromperem a gravidez resultante de estupro, como determina a lei”, afirma Celina Arêas, secretária da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
Ela se refere à Portaria 2.282, publicada no Diário Oficial da União em 27 de agosto. Essa Portaria “dispõe sobre o procedimento de justificação e autorização da Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de Saúde-SUS”.
A reação de parte da bancada feminina no Congresso Nacional foi imediata e dez deputadas (Alice Portugal/PCdoB-BA, Áurea Carolina/PSOL-MG, Érika Kokay/PT-DF, Fernanda Melchionna/PSOL-RS, Jandira Feghali/PCdoB-RJ, Lídice da Mata/PSB-BA, Luiza Erundina/PSOL-SP, Natália Bonavides/PT-RN, Perpétua Almeida /PCdoB-AC e Sâmia Bonfim/PSOL-SP) elaboraram um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) para anular essa desumanidade.
“Essa Portaria, logo após o episódio da criança que, vítima de estupro, se submeteu a um procedimento de aborto autorizado por lei, revela uma visão obtusa, conservadora e autoritária, de um tema de extrema gravidade como esse”, revela a juíza Valdete Souto Severo, presidenta da Associação Juízes para a Democracia.
Como diz um cartaz em uma manifestação: “As pobres morrem. As ricas abortam. Todas sofrem”. Elgiane Lago, secretária de Saúde da CTB, assinala que “essa tentativa de criminalizar a interrupção da gravidez, inclusive em casos de estupro, é uma imoralidade e vai contra as mulheres pobres, porque as ricas têm dinheiro para pagar pelo procedimento em clínicas caríssimas, são as mulheres pobres que dependem do SUS e o governo quer impedi-las”.
Já a deputada Jandira Feghali (PCdoB-RJ) afirma que a Portaria “é uma ideologização fundamentalista” da questão e “viola a Constituição, o Código Penal, as normas em vigor, além de ser cruel e de indução à tortura da vítima” constituindo “uma segunda violência”, além de violar o “Código de Ética Médica e o sigilo profissional”.
As deputadas que assinam o PDL denunciaram a Portaria na Organização das Nações Unidas, na Comissão de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos e prometem barrá-la na Justiça se for necessário.
“Submeter uma mulher vítima de violência sexual a procedimento de quatro etapas, como refere a Portaria, claramente constrangendo a vítima a expor a sua intimidade e a passar por um processo assediador para que tenha direito ao procedimento médico, atenta não apenas contra a ordem jurídica, que prevê a interrupção da gravidez em caso de estupro, mas também contra a humanidade e dignidade da pessoa atingida pela violência”, reforça Valdete.
Para Berenice Darc, dirigente da CTB e secretária de Relações de Gênero da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação, “o desgoverno quer impor às mulheres uma gravidez forçada, fruto de uma violência inominável”.
De acordo com Berenice, essa Portaria significa um retrocesso de pelo menos “50, 60 anos e quer acabar com a garantia legal de realização de aborto em casos de estupro, risco de morte para as mães e fetos anencefálicos”, como a legislação permite. Aliás, diz ela, “essa lei foi conquistada após amplo debate com a participação de toda a sociedade”, deixando claro que “nenhuma mulher quer fazer um aborto, mas é inconcebível que se exija levar adiante uma gravidez fruto de tamanha violência e querer ser dono do nosso corpo”.
A secretária da Mulher Trabalhadora da CTB-SP, Gicélia Bitencourt argumenta que “além de obrigar os profissionais da saúde a desviar sua função” a \Portaria “expõe as mulheres de maneira humilhante e extremante constrangedora”, segundo ela, isso “irá fazer com que muitas mulheres optem pelo aborto clandestino com riscos tão dramáticos quanto a violência que já sofreram com o estupro”.
Essa medida “também obrigará os profissionais de saúde a desrespeitar o Estatuto da Criança e do Adolescente, nos casos de estupro de crianças e adolescentes, como foi o caso da menina de 10 anos, amplificado pelo desrespeito de setores arcaicos e extremistas de direita”, complementa.
Por isso, “A defesa da possibilidade de interromper a gravidez não pode, portanto, ser confundida com a defesa da realização do aborto, do mesmo modo que defender a descriminalização do uso de drogas não é defender o uso”, destaca Valdete.
“O Estado que deveria proteger as mulheres vítimas de violência sexual pode se tornar seu algoz e se igualar ao estuprador”, reforça Gicélia. “Sabemos que o intuito da tal cruzada antiaborto não é proteger o feto e sim ter controle sobre o corpo das mulheres porque em sua hipocrisia de tentar ‘proteger’ os embriões, nada fazem contra o genocídio da juventude negra e pobre do Brasil que morrem todos os dias”, ou seja, “querem ver nascer para matar depois”.
Berenice explica que o desgoverno Bolsonaro “olha para um único modelo de família e um modelo minoritário”, para ela, “quase não se vê mais o modelo papai, mamãe e filhos”.
Ela argumenta que há diversidade de tipos de família. “Hoje a família brasileira é composta por mãe e filhos, avós e netos, em muitos casos” e há também “pais e filhos, mães e mães, pais e pais”, mas “Bolsonaro se apega ao que há de mais atrasado para tentar fugir do debate sobre a inépcia de seu mandato no governo e a destruição do país que está promovendo”.
Dados do Mapa da Violência 2019, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, apontam para 66.041 estupros notificados no Brasil em 2018, desse total, 53,8% das vítimas forma meninas de até 13 anos e a maioria absoluta dos crimes ocorrem dentro de casa por pessoas conhecidas das vítimas. Segundo o Instituto Patrícia Galvão menos de 10% desses crimes são denunciados.
“Nós precisamos evoluir para discutir abertamente e autorizar a interrupção da gravidez também em hipótese na qual, não havendo violência sexual, a mulher não se sinta habilitada a levar a termo a gestação. O aborto é sempre um evento triste, traumático, absolutamente marcante na vida de uma mulher”, diz Valdete.
Portanto, para ela “a proibição do aborto é uma política pública com evidente recorte de classe, que joga as mulheres pobres na clandestinidade, sujeitando-as a procedimentos que muitas vezes comprometem a sua saúde, quando não eliminam a sua vida”, finaliza.