Por Camila Feix Vidal e Victor Tarifa Lopes*
Em 1871, Karl Marx já argumentava que a história seria muito mística, se os “acidentes” não desempenhassem papel algum. A emergência do novo coronavírus e da pandemia que dele sucede não é bem um “acidente”, mas consequência de um modelo estrutural econômico e social neoliberal de caráter transnacional. Essa pandemia já vinha sendo esperada por infectologistas desde os anos 2010 (chamada então de pandemia X), com alguns trabalhos científicos datando inclusive de antes disso. A própria Inteligência dos EUA observou, em janeiro de 2019, que: “Avaliamos que os Estados Unidos e o mundo permanecerão vulneráveis à próxima pandemia de gripe, ou surto em larga escala, de uma doença contagiosa que pode levar a taxas massivas de mortes e invalidez, afetar gravemente a economia mundial, sobrecarregar recursos internacionais e aumentar os pedidos de apoio aos Estados Unidos” (Alves, 2020).
Esse relatório de Avaliação Mundial de Ameaças concluiu que as melhorias na segurança da saúde por parte da comunidade internacional “podem ser inadequadas” e foi ostracizado pela administração Donald Trump. O mesmo aconteceu com outro relatório em novembro de 2019, também ignorado (Stracqualusri, 2020). O “acidente” da pandemia foi, assim, um “acidente” bem avisado e está ancorado em uma lógica neoliberal.
Conforme a pandemia avança no tempo-espaço, evidenciam-se as fragilidades do modelo socioeconômico estadunidense, caracterizado pelo neoliberalismo. Para explorar o comportamento desses indicadores, foram escolhidas três dimensões específicas para a análise dos impactos da pandemia: o mercado de trabalho, a situação de (in)segurança alimentar e o acesso à saúde (sobretudo pública). Como se verá, todas as três possuem significativas intersecções entre si e com outras questões centrais do sistema capitalista, como gênero, raça e desigualdade/concentração de renda.
1. Neoliberalismo como causa da pandemia e efeito de seu aprofundamento
Compartilhamos aqui da definição de Dardot e Laval (2016), entendendo que o neoliberalismo não se resume a uma agenda, ou política, econômica. É uma racionalidade baseada no princípio universal da concorrência que estrutura não somente a ação dos governos, mas também a ação dos governados. De modo mais específico, o neoliberalismo se define pelo “conjunto de discursos, práticas e dispositivos que determinam um novo modo de governo dos homens, segundo o princípio universal da concorrência” (Dardot e Laval, 2016, p.17). É uma racionalidade, porque produz ele próprio um certo modo de relações sociais, ou seja, produz novas formas de comportamento e de relacionamentos conosco e com os outros. Assim,
O neoliberalismo define certa norma de vida nas sociedades ocidentais e, para além dela, em todas as sociedades que seguem no caminho da “modernidade”. Essa norma impõe a cada um de nós que vivamos num universo de competição generalizada, intima os assalariados e as populações a entrar em luta econômica uns contra os outros, ordena as relações sociais segundo o modelo do mercado, obriga a justificar desigualdades cada vez mais profundas, muda até o indivíduo, que é instado a conceber a si mesmo e a comportar-se como uma empresa (Dardot e Laval, 2016, p. 16).
Para Mike Davis, a emergência desse vírus tem relação direta com o aprofundamento da racionalidade neoliberal em escala global. Mais especificamente, com a destruição de florestas tropicais por grandes corporações para produção agrícola; com a mudança na produção agrícola (de familiar para agronegócio); e com a destruição do setor público (e, portanto, do investimento em saúde publica). De fato, a pandemia deixa visível e explicita as fragilidades de sociedades capitalistas neoliberais mais desenvolvidas. A apreensão dos meios de produção pelas mãos de uma minoria e a exclusão de uma maioria, inclusive de suas condições de sobrevivência e da possibilidade de conseguir sustentar materialmente sua existência, limitam as respostas e aumentam os problemas e as crises nessa pandemia.
Desemprego, habitações precárias, falta de saneamento básico, transporte público lotado e ineficiente, falta de saúde pública são consequência de um modelo neoliberal, ao mesmo tempo em que revelam as fragilidades estruturais desse mesmo modelo e racionalidade.
Nesse sentido, evidencia-se a incapacidade dos Estados para a criação de políticas públicas voltadas para a proteção da vida, porque vão de encontro com as ideias e políticas próprias do neoliberalismo baseadas no individualismo, na competição, na iniciativa privada e no Estado mínimo. Vale lembrar que o egoísmo social, o fim da empatia e a negação da solidariedade, onde a ação coletiva se torna mais difícil, são legitimados e justificados nessa racionalidade neoliberal. Assim, como lidar com um problema que demanda necessariamente solidariedade, coordenação conjunta e um papel ativo do governo federal, se o que se prega é uma agenda contrária?
A pandemia expôs ainda a necropolítica e o darwinismo social que está na base do neoliberalismo. Basta lembrar da suposta equação entre a preservação da vida e a preservação da economia – essa última sendo priorizada em detrimento da primeira. Ou ainda lembrar da contabilidade feita no uso de recursos públicos para salvar vidas de idosos (todos dispensáveis nessa lógica): “spending £350 billion to prolong the lives of a few hundred thousand mostly elderly people is an irresponsible use of taxpayers’ money” [“Gastar £ 350 bilhões para prolongar a vida de algumas centenas de milhares de pessoas, em sua maioria idosos, é um uso irresponsável do dinheiro dos contribuintes”](Young, 2020a). Para Young, as mortes por coronavírus são “efeitos colaterais” (Young, 2020b).
O preço de algumas vidas em detrimento de outras é, por fim, também perceptível na compra por parte dos EUA de quase todo estoque mundial de medicamentos para o combate à COVID-19, minando qualquer possibilidade de indivíduos em países periféricos acessarem esse medicamento. É a legitimação da vida de uns em detrimento dos outros pela razão neoliberal.
Nos Estados Unidos, essa logica é visível no grande número de sem-tetos; no precário e ineficiente sistema de Previdência Social e auxílio ao desempregado; no alto número de solicitação de seguro-desemprego aos moldes da Grande Depressão; e no sistema de saúde altamente privatizado. O modelo neoliberal está ainda presente na insuficiência das indústrias farmacêuticas (e iniciativa privada) no controle da pandemia. Essas, preocupadas com a geração de lucros e com o desenvolvimento de medicamentos altamente lucrativos (como o caso de antidepressivos e de remédios para disfunções sexuais), não injetam recursos necessários em medicamentos e vacinas ainda sem comprovação científica. Como é de costume, o poder público tem-se constituído ator fundamental na criação e na viabilização de uma vacina para a COVID-19, seja por intermédio de universidades públicas, seja por meio de recursos públicos.
Por fim, a pandemia aprofundou ainda mais as desigualdades sociais que, desde o governo Reagan, o primeiro governo estadunidense publicamente neoliberal, já vinham-se acentuando. É atualmente o país com mais mortes e com um número alarmante de desempregados e de indivíduos com pouca, ou nenhuma, condição de subsistência. O governo Trump nega a gravidade e delega responsabilidades, enquanto naturalizamos as mortes.
Entre os efeitos gerados pela atual pandemia e suas ações de combate (como a aplicação de quarentenas e a redução de mobilidade de pessoas), há o consenso de que a COVID-19 levará à queda dos Produtos Internos Brutos (PIB) de grande parte dos países, a altas nas taxas de desemprego, ao colapso de sistemas de saúde público e privados, além de outros impactos sociais, políticos e econômicos.
No mercado de trabalho, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que, com 93% das pessoas empregadas em regiões com medidas de quarentena e fechamento do local de trabalho, ocorreu um declínio de 14% das horas de trabalho em nível mundial, equivalente a 400 milhões de empregos de tempo integral. A região das Américas (sobretudo América Latina e Caribe) é a mais afetada (18,3% do total). Também há indicativos sobre como os efeitos da pandemia são sentidos de maneira desigual principalmente para as mulheres, que ocupam 510 milhões postos de trabalho nos setores mais atingidos (40% do total de mulheres empregadas), colocando em risco ganhos históricos alcançados nas últimas décadas (ILO Monitor, 2020).
Para o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) mundial vai sofrer sua maior queda desde 1990, quando este conceito foi introduzido. É o que mostra o Gráfico 1.
Gráfico 1: Efeitos no ÍDH Mundial (1990-2020)
Fonte: PNUD, 2020.
Nota 1: o valor do ano de 2019 é uma estimativa provisória.
Ainda sobre as consequências possíveis em nível global, o Banco Mundial estima reduções no PIB mundial semelhantes às ocorridas na década de 1930 com a Grande Depressão, com aproximadamente 93% das economias entrando em recessão (maior percentual desde 1871), conforme gráfico 2.
Gráfico 2: Crescimento global do PIB (1871-2021)
Fonte: World Bank, 2020.
Nota 1: os dados para 2020 e 2021 são estimativas.
Nota 2: áreas em cinza se referem a recessões globais.
2. A pandemia nos EUA: análise de três dimensões socioeconômicas
2.1 Efeitos no mundo do trabalho
As Américas se destacam como a região mais atingida em termos de perda de postos de trabalho e não é diferente com o que ocorre nos EUA. Se 2019 apresentava uma das menores taxas de desemprego de sua história, o cenário em abril de 2020 é do extremo oposto: a maior taxa de desemprego no período registrado, chegando a 14,7% (gráfico 3).
Gráfico 3: Taxa de desemprego nos EUA (em %), população acima de 16 anos (1948-2020)
Fonte: U.S. Bureau of Labor Statistics.
No caso específico das populações mais jovens, que historicamente já observavam taxas de desemprego superiores, o desemprego aumentou vertiginosamente. Com a pandemia, as cifras chegaram a 27,4% para o mês de abril nos Estados Unidos, maior taxa da história recente no país (gráfico 4).
Gráfico 4: Taxa de desemprego nos EUA (em %), população jovem (16 a 24 anos) (1948-2020)
Fonte: U.S. Bureau of Labor Statistics.
Em face de uma crise de empregabilidade, o número de pedidos de seguro-desemprego e de beneficiários sociais aumentou consideravelmente, expondo o sistema de proteção social estadunidense ao trabalhador a pressões fiscais sem precedentes, com quase 25 milhões de beneficiários no mês de abril deste ano (gráfico 5).
Gráfico 5: Beneficiários por situação de desemprego nos EUA, em milhões – (1965-2020)
Fonte: U.S. Department of Labor.
Os dados coletados evidenciam como a pandemia impactou de maneira sem precedentes o mercado de trabalho estadunidense, mas é importante destacar em que contexto isso está ocorrendo. Há uma consolidada narrativa na bibliografia especializada (e.g., Wallerstein, 2004) que aponta que os países centrais da economia mundial (sobretudo EUA e Inglaterra) passaram por uma elevada crise de lucratividade e, como resposta, implementaram a agenda neoliberal de desmantelamento do modelo de Estado de Bem-estar Social e de financeirização da economia, avançando também no desmonte de sistemas de proteção de trabalhadores (como os sindicatos). Com isso, a classe trabalhadora nos EUA vem passando por um processo de enfraquecimento político, ao mesmo tempo em que as taxas de produtividade (e, consequentemente, lucro) passaram a crescer.
No gráfico 6, é ilustrado como, no intervalo de 1950 a 2020, a taxa de produtividade de trabalhadores urbanos apresentou um movimento de ascendência em praticamente todo período, com aumento mais acentuado a partir de 1980, momento da “virada neoliberal”.
Gráfico 6: Taxa de produtividade de trabalhadores urbanos nos EUA (1950-2020/2º trimestre)
Fonte: U.S. Bureau of Labor Statistics.
Dentro deste lapso temporal, a taxa de crescimento dos salários apresentou uma tendência de queda, conforme gráfico 7:
Gráfico 7: Taxa de crescimento de salários nos EUA (1960-Maio/2020)
Fonte: U.S. Bureau of Labor Statistics.
Logo, evidencia-se que a atual crise pandêmica atinge uma classe trabalhadora politicamente fragilizada, desmobilizada e com um limitado acesso a redes de proteção social por parte do Estado. Além disso, um contingente significativo de pessoas estão na chamada gig economy, a economia do freelancer, que atualmente conta com 36% da mão de obra do país. Ainda segundo a consultoria McKinsey & Company, os impactos variam conforme as variáveis “escolaridade”, “raça”, “idade” e “gênero”. Assim, indivíduos sem nível superior têm duas vezes mais chances de ocuparem postos em trabalhos vulneráveis e, portanto, mais atingidos pelas medidas de lockdown. O mesmo acontece para minorias étnicas, igualmente mais expostas a posições vulneráveis, assim como jovens e mulheres (Lund et al, 2020).
2.2 Efeitos na (in)segurança alimentar
Conforme a emergência sanitária avança, tornam-se mais comuns as imagens de intermináveis filas de famílias vulneráveis à espera de doação de alimentos, em um esquema conhecido como food banks (bancos de alimentos). Trata-se de arranjos da sociedade civil de armazenamento de alimentos para, em situação de aumento de vulnerabilidade, fornecer alimentação para famílias e pessoas carentes. Nesta seção, vamos nos debruçar sobre os dados referentes à segurança alimentar nos EUA, tendo como recorte temporal o período anterior e posterior da pandemia (estimativas).
O Departamento americano da Agricultura (USDA, na sigla em inglês) define a segurança alimentar como acesso por todas as pessoas, em todos os tempos, a uma alimentação adequada para uma vida ativa e saudável, sem a precarização de outros direitos, i.e., sem que se tenha de abrir mão de outros direitos para se ter acesso ao alimento. A insegurança alimentar ocorre, portanto, quando as pessoas precisam realizar um trade-off entre se alimentar de maneira saudável, ou garantir outro direito, como moradia, saúde, ou educação. Famílias podem não estar em insegurança alimentar o tempo todo, mas estão quando precisam abrir mão dela em nome do pagamento do aluguel, ou quando recorrem a alimentos baratos, mas de baixa qualidade nutricional, como fast-foods.
Trata-se de uma questão complexa e multifacetada que envolve “aspectos físicos, nutricionais, socioeconômicos, ambientais e culturais” (Paula, 2017, p. 174): uma pessoa que passa fome está em insegurança alimentar, mas nem toda pessoa em insegurança alimentar está passando fome, como nos casos de pessoas com obesidade e desnutrição. Resgatando-se dados do USDA foi possível construir o gráfico abaixo, que apresenta as tendências de insegurança alimentar para o país entre 1995 e 2018.
Gráfico 8: Tendências nas taxas de prevalência de insegurança alimentar e segurança alimentar muito baixa nos domicílios dos EUA (1995-2018)
Fonte: United States Department of Agriculture.
No gráfico acima, é possível identificar que, em momentos de crises, como na crise financeira de 2008 e 2009, há um aumento de famílias em situação de insegurança alimentar, sejam nas modalidades leve, ou severa. Nesse sentido, o USDA indica que mães solteiras, pessoas de baixa renda e populações negras tendem a apresentar percentuais maiores do que a média nacional. Enquanto a média nacional foi de 4,3% de domicílios com insegurança alimentar em 2018, para populações negras foi de 9,1%; para mães solteiras com crianças, de 9,4%; e para pessoas com renda abaixo de 185% da linha da pobreza, de 12%.
A situação ilustrada pelo gráfico 8 é de 37,2 milhões de pessoas nos EUA em lares com insegurança alimentar, sendo 9,5 milhões de adultos com segurança alimentar muito baixa, e seis milhões de crianças em insegurança alimentar. Logo, diante da COVID-19, a situação tende a se agravar.
Segundo projeções da organização da sociedade civil Feeding America, estima-se que o número de pessoas nos EUA em insegurança alimentar em 2020 poderá chegar a 54 milhões (um em cada seis estadunidenses), incluindo 18 milhões de crianças (uma em cada quatro). Na tabela 1, são projetados três cenários. Cenários A e B espelham mudanças que ocorreram no primeiro e no segundo ano da “Grande Depressão”, em 1929; no Cenário C, são estimados valores com circunstâncias mais severas, o qual a organização indica ser o mais possível de se concretizar.
Tabela 1: Projeções de insegurança alimentar e fatores subjacentes nos EUA, por cenário, 2020
Cenário A | Cenário B | Cenário C | |
Taxa de Desemprego Anual projetada(crescimento percentual a partir de 2018) | 5.0%(+ 1.1) | 8.4%(+ 4.5) | 11.5%(+ 7.6) |
Taxa de Pobreza Anual projetada(crescimento percentual a partir de 2018) | 13.3%(+ 1.5) | 14.4%(+ 2.6) | 16.6%(+ 4.8) |
Taxa de Insegurança Alimentar projetada(crescimento percentual a partir de 2018) | 12.5%(+ 1.0) | 14.5%(+ 3.0) | 16.7%(+ 5.2) |
Projeção de pessoas com insegurança alimentar (crescimento em milhões a partir de 2018) | 40.5 M(+ 3.3) | 47.1 M( + 9.9) | 54.3 M(+ 17.1) |
Fonte: Feeding America, 2020.
A publicação ressalta ainda como as projeções tendem a aumentar, conforme os recortes já mencionados: mães solteiras, populações negras e pessoas mais pobres. O que se observa é que a pandemia atua de modo parcial, atingindo principalmente indivíduos que pertencem a uma situação vulnerável dadas suas condições sociais e econômicas.
2.3 Efeitos no acesso à saúde
O contexto em que a pandemia atinge os EUA é de um país sem um sistema público de acesso à saúde universal e gratuito. Movidos pela lógica neoliberal, a saúde é entendida como uma mercadoria, e não como direito básico garantido, e onde até a compra de planos de saúde pode ser comprometida pela presença de doenças preexistentes. Conforme dados do National Center for Health Statistics, 4,8% dos estadunidenses deixaram de obter tratamento médico por conta de custos, e 11,1% das pessoas com até 65 anos (total de 30,1 milhões) não possuem qualquer tipo de cobertura de seguro de saúde. Quando assegurados, há uma prevalência de seguros privados: 65,1% das pessoas com até 65 anos têm seguro privado, e 25,5%, público.
Novamente, a questão de acesso à saúde possui destacadas interseccionalidades com a variável raça. No gráfico 9, são indicados os percentuais de pessoas que não possuem acesso a tratamento médico em função dos custos, sendo distinguidos conforme etnia. Nota-se como as minorias étnicas, como populações negras, indígenas e hispânicos, tendem a possuir percentuais maiores, inclusive sendo mais impactados em momentos de crise, a exemplo do grande aumento observado durante a crise de 2009, maior do que a média nacional e das pessoas brancas.
Gráfico 9: Atraso ou não recebimento de tratamento médico necessário, devido a custos (1997-2017)
Fonte: National Center for Health Statistics.
Há de se chamar a atenção sobre como a pandemia chega a um país que, ao longo das últimas cinco décadas, vem priorizando gastos em orçamentos militares, em detrimento de investimentos sociais, ou em infraestrutura hospitalar. Nos gráficos 10 e 11, expõe-se o número de leitos a cada 1.000 pessoas e o número de hospitais a cada milhão de pessoas, respectivamente. Em ambos, constata-se um constante declínio dos números, deixando a população desprotegida em momentos de crises sanitárias, como a atual.
Gráfico 10: Número de leitos a cada 1.000 pessoas – EUA (1960-2016)
Fonte: Trading Economics e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Gráfico 11: Número de hospitais a cada 1 milhão de pessoas – EUA (1980-2016)
Fonte: Trading Economics e Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE).
Com isso, o novo coronavírus chega a um país, cuja economia é robusta, mas com uma frágil rede de cobertura médica e com baixo investimento em infraestrutura hospitalar.
2.3 Outros indicadores e a relação com a pandemia
Uma série de outros indicadores expõe como o modelo neoliberal de organização da vida (em todas as dimensões: política, social e econômica) apresenta falhas no manejo da situação. Estima-se, por exemplo, que, em 2019, havia mais de 550 mil pessoas em situação de rua no país, conforme dados do United States Interagency Council on Homelessness. Desses, aproximadamente 10% seriam veteranos de guerra, mostrando como o país do globo que mais gasta no âmbito militar, ao mesmo tempo, não protege ex-combatentes da miséria e da falta de moradia.
Com efeito, ao priorizar a produtividade e a alocação de recursos da maneira mais eficiente do ponto de vista do custo-benefício, o neoliberalismo, entendido como um tipo específico de política econômica, fez a indústria estadunidense se fragmentar de tal maneira que inviabiliza qualquer tipo de resposta rápida à crise sanitária. Um caso notório é o dos equipamentos de proteção individual que se esgotaram em curto prazo, sem empresas nacionais capacitadas com capital fixo para a produção, obrigando os EUA a importar maquinário e insumos da China (Bradsner, 2020).
3. Conclusões
Autores como Wallerstein (2004) indicam que, desde a década de 1970, os EUA vêm experimentando uma queda gradual e relativa de poder, perdendo paulatinamente a hegemonia internacional e o posto de nação mais poderosa do globo. Não por acaso, a agenda neoliberal foi implementada em um momento de crise (sobretudo crise de lucratividade), como resposta à perda de competitividade face a concorrentes estrangeiros. Independentemente de seu declínio, ou possível ascensão, o modelo neoliberal estadunidense tem demonstrado suas fragilidades. A crença (ou a razão) neoliberal tem levado países como os EUA à liderança de rankings no número de óbitos pela atual pandemia, enquanto muitos retomam discussões sobre o papel do Estado como agente responsável para além da regulamentação do mercado, ou do fortalecimento de corporações.
Torna-se claro que um Estado responsável significa uma sociedade mais resiliente, e países com Estados enfraquecidos têm apresentado desempenho piores nesta crise. Por fim, se o neoliberalismo vive e se fortalece de crises (Klein, 2008), estariam os EUA e o mundo ocidental diante de um possível fortalecimento do modelo neoliberal, ou seria esta a oportunidade de se refundar o ethos vigente no país (e em grande parte do mundo, inclusive no Brasil)? Tudo dependerá, como aponta Wallerstein, das “nano-ações” em “nano-momentos” tomadas por uma imensidão de “nano-atores”.
* Camila Feix Vidal é professora no Departamento de Economia e Relações Internacionais (UFSC) e pesquisadora do INCT/INEU e do GEPPIC. Publicou recentemente The Forum of Ideas: The Forum da Liberdade, 1988-2018 na revista Contexto Internacional, v. 42, n. 1, jan-abril 2020. Contato: [email protected]. Victor Tarifa Lopes é doutorando no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais (UFSC) e pesquisador do grupo de pesquisa Economia Política, Relações Internacionais e Desenvolvimento da UFGD. Contato: [email protected].