Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Reproduzido dos Jornalistas Livres
Dia 29 de junho, o presidente Jair Bolsonaro sanciona a “Lei Aldir Blanc”, que regulamenta auxílio financeiro para profissionais da cultura nesses tempos de pandemia. Essa é uma das dimensões mais tristes dessa doença maldita: a morte da arte. Não existe arte sem aglomeração. Tomara que passe logo. A vida humana não pode ser apenas fenômeno biológico.
30 de junho, Carlos Alberto Decotelli se demite da chefia do Ministério da Educação depois de virem a público notícias de que ele fraudou currículo acadêmico. Doutorado falso na Argentina, trabalho docente na Fundação Getúlio Vargas desmentido pela instituição, plágio em dissertação de mestrado. Decotelli foi-se antes de chegar.
Primeiro, Bolsonaro sanciona lei que ajuda profissionais da cultura, categoria que sempre desprezou, chamava de “vagabundos”, alimentando todo tipo de mentiras para jogar a população contra a Lei Rouanet. Depois, correu com um ministro que “apenas” mentiu no currículo.
Vamos combinar, né? Num governo em que os ministros ameaçam prender juízes do STF, que dizem sem nenhum pudor que aproveitarão a pandemia para derrubar legislação ambiental, o que é mentir no currículo Lattes? O governo diz que procura um “técnico” para comandar a pasta da educação, o que sugere que o novo indicado não será alinhado à guerra cultural olavista.
Algo está diferente. Já há umas duas semanas que o tigrão tá meio tchuchuca, com comportamento mais próximo do que se espera de um presidente da República, que por dever de ofício é obrigado a respeitar os ritos da democracia liberal.
Por quê? O que está acontecendo?
Em texto publicado na Folha de São Paulo em 15 de junho, Arthur Lyra, cacique do “Centrão”, disse que o governo está “amadurecendo”. Prova dessa maturidade seria a aproximação com o próprio Centrão, que ao tirar o governo de extrema-direita golpista e trazê-lo ao plano da sobriedade institucional estaria colaborando para a defesa da própria democracia brasileira.
Conte outra!
De centrão, o Centrão tem muito pouco. Historicamente quase sempre esteve inclinado à direita, ainda que por pragmatismo fisiológico tenha se mostrado capaz de apoiar agendas progressistas.
Além do mais, carece de ser muito ingênuo para achar que a moderação no tom é resultado de amadurecimento. O problema do presidente nunca foi imaturidade, falta de experiência política. Bolsonaro passou quase 30 anos no Congresso Nacional. É impossível ficar tanto tempo no Parlamento e não aprender alguma coisa. Bolsonaro não é bobo. Tolo é quem continuar achando que ele é idiota.
Bolsonaro é ideológico e está convencido de que lidera revolução destinada a sanear o Brasil e construir futuro melhor. Não é cortina de fumaça. Não é hipocrisia. É ideologia mesmo, sincera como toda ideologia.
É crença. É utopia, o que torna Bolsonaro tipo político especialmente perigoso. Não há acordo possível com quem está convencido de que é responsável por acelerar a marcha da história rumo ao progresso.
Na lógica da revolução bolsonarista, o contrato social da redemocratização formalizado na Constituição de 1988 é o antigo regime, o sistema corrupto que assaltou os cofres públicos e maculou os valores família cristã brasileira ao estimular na sociedade hábitos licenciosos.
O futuro idealizado pelo bolsonarismo é uma sociedade dominada por proprietários armados e senhores da vida e da morte dentro de seus domínios, representados diretamente pelo chefe do Executivo, sem mediação institucional. Na utopia bolsonarista, o Estado é mínimo e a casa é grande.
O bolsonarismo também opera com certo conceito de “democracia”, que é palavrinha elástica o suficiente para permitir os mais diversos usos. “Democracia” é conceito que está sempre sendo disputado. Parte da imprensa liberal comemorou a pesquisa DataFolha publicada em 29 de junho que aponta 75% da população brasileira se dizendo defensora da “democracia”. A comemoração é otimista demais. Cabe muita coisa no guarda-chuva da “democracia”. Por isso, o substantivo precisa tanto de adjetivo.
Qual a democracia a sociedade brasileira apoia tanto?
Não há tirano que se diga tirano. Acho mesmo que não há tirano que se considere tirano, que acorde pela manhã e pense “Hoje vou matar, torturar, reprimir só porque sou malvadão”. Os tiranos acreditam estar agindo em nome do “bem comum”, da “justiça”, do “progresso”, da “vontade de Deus”.
Na auto-representação todos somos virtuosos, até mesmo os tiranos, até mesmo os fascistas.
A prisão de Queiroz coloca uma bomba no colo do presidente da República. É muito difícil imaginar que a mulher e as filhas de Queiroz, ou os outros funcionários dos gabinetes dos Bolsonaro, ficarão calados, que não vão assinar acordo de delação com o MP em algum momento.
Para além dos generais palacianos, as Forças Armadas não responderam à convocação golpista. E vejam que Bolsonaro tentou, tentou muito.
A construção de uma rede miliciana junto às PMs é operação complexa. Demanda tempo para doutrinar a tropa. Diante do cerco institucional liderado por Alexandre de Moraes e Celso de Melo, Bolsonaro se viu obrigado a recuar. O bolsonarismo sabe que ainda não está pronto para a batalha final.
Que as instituições não se iludam achando que é possível disciplinar Bolsonaro. Não é. O recuo é tático e não ideológico.
Um Bolsonaro “moderado” é ainda mais perigoso do que o Bolsonaro virulento. O Bolsonaro virulento tensiona, agita, nos obriga a ficar em constante vigilância. Um Bolsonaro “soft” que sanciona lei para ajudar artista, que procura “ministro técnico” para a educação, nos faz achar que a situação voltou à normalidade.
Não voltou!
Não devemos dormir tranquilos enquanto Bolsonaro for o presidente. Bolsonaro é a encarnação do caos. Não é o resultado do caos. É o caos em si.
Pior do que o Bolsonaro agitador, ameaçando a nação com golpe de Estado, é o Bolsonaro “paz e amor”. Assim, ganha-se tempo para organizar o projeto golpista. A ruptura será sempre o horizonte do bolsonarismo.
Bolsonaro se enxerga como revolucionário e não vai parar. Será sempre ameaça à democracia. Se for reeleito em 2022, indicará quatro ministros para o STF até 2026. É mais de 1/3 da corte.
Ou a democracia derruba Bolsonaro ou Bolsonaro derrubará a democracia, nem que seja aos poucos, ocupando por dentro as instituições da República.
Não é possível negociar com Bolsonaro. Não é possível conviver com Bolsonaro.