Um dos meios ideológicos de subordinar o trabalho ao capital é obscurecer a consciência e a identidade de classe dos trabalhadores e trabalhadoras, subvertendo conceitos clássicos e descrevendo as relações de trabalho com palavras atraentes mas enganosas como “colaborador”, “parceiro”, em vez de empregado. É neste sentido que tem sido empregado de forma generalizada o vocábulo “empreendedor”, que porta o discreto charme da burguesia, usado para caracterizar os entregadores e outras categorias pertencentes à classe trabalhadora
Mas entregadores que trabalham para aplicativos e realizam nesta quarta-feira (1º) uma greve contra seus patrões (os donos dos apps), não são empreendedores, mas classe trabalhadora à margem dos direitos trabalhistas consagrados na CLT e na Constituição.
Conforme sugere reportagem do jornalista Vitor Nuzzi, da RBA, reproduzida a seguir, trata-se, basicamente, de uma nova modalidade de trabalhadores precarizados, sem direitos, com baixa remuneração e longas jornadas. Esses argumentos estiveram presentes durante exposição dos professores Ana Cláudia Moreira Cardoso e Ruy Braga, em conferência organizada pela Escola Dieese de Ciências do Trabalho, terça-feira (30) à noite.
“Estamos falando de um novo modelo de negócios, baseado nas plataformas digitais”, lembra Ana Cláudia, professora visitante no Instituto de Ciências Humanas (ICH) da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). Atualmente, ela realiza pesquisa justamente com trabalhadores em plataformas digitais. “(Essas empresas) têm um modus operandi que é muito comum, exatamente essa necessidade de captação de dados. Mas dados de quem? Os nossos. Qual é a lógica dessas empresas? ‘Empreendedorismo’, flexibilidade como sinônimo de liberdade”, acrescenta.
Em seguida, ela apresenta alguns dados de pesquisa elaborada por vários profissionais e realizada entre 13 e 27 de abril com 298 entregadores de 29 cidades, com quase 83% concentrando-se em quatro capitais (São Paulo, Belo Horizonte, Recife e Curitiba). Perto de 60% deles relataram jornadas diárias acima de nove horas, e 8% disseram ficar na rua mais de 15 horas por dia. E 78% deles trabalhavam de seis a sete dias por semana. “Então, a pergunta é: onde está a flexibilidade?”, questiona a pesquisadora.
Renda menor, risco maior
Antes da pandemia, quase metade dos entregadores de aplicativos entrevistados (48%) recebia até R$ 520 por semana. Mas Ana Cláudia observa que desse valor ainda serão retirados gastos com manutenção do veículo, combustível, celular. O risco e o gasto são inteiramente do entregador. Além disso, ele pode ficar doente ou sofrer acidente, ter avaria na moto, o que o impede de trabalhar e, consequentemente, de ser pago. Com a crise, quase 60% apontaram queda no rendimento. E 84% disseram trabalhar com medo de contrair o coronavírus.
“A maior parte disse que não houve nenhuma medida protetiva. Dos que indicaram que houve, a maior parte disse que foi (a medida) uma frase escrita embaixo do pedido”, diz a professora. Ela lembra ainda que entre as reivindicações do movimento está o fim dos bloqueios – quando o trabalhador é “suspenso”, sem nenhuma explicação, do aplicativo. E ele não tem acesso aos seus próprios dados.
“Os entregadores de aplicativos são trabalhadores precários”, em uma região já marcada pela precariedade e pela informalidade, reforça Ruy Braga, professor titular do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo (USP) e vice-coordenador do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania (Cenedic). Antes, segundo ele, a face mais evidente do trabalho precário era a do terceirizado. Agora, são os informais.
Horizonte sombrio
Isso em um cenário que não oferece “nenhum horizonte de superação da informalidade”, diz ainda o professor. Não só pelo desemprego elevado, mas pela própria desestruturação do mercado formal de trabalho, após sucessivas reformas e com a mitigação de direitos. O horizonte é “sombrio”, avalia. E aponta trabalhadores que considera “instrumentalizados” por startups digitais. “Que se vendem como empresas de tecnologia, mas que na verdade são empresas predadoras. Porque o modelo de negócios está apoiado, em grande parte, sobre a espoliação dos direitos trabalhistas.”
Braga considera importante comparar com um período recente. Refere-se particularmente à “era Lula”, quando houve crescimento expressivo do emprego formal. A maioria de baixa remuneração, não mais que dois salários mínimos. Mas eram trabalhadores que, bem ou mal, estavam inseridos no que ele considera “polo protetivo do trabalho”.
Ou seja, havia certo grau de proteção com garantia de direitos, que foram sendo dizimados, especialmente depois de 2015. Para o professor, o trabalhador brasileiro foi submetido a uma espécie de escolha de Sofia: empregos ou direitos? Agora, constata, não tem nem uma coisa, nem outra.
Preso na pobreza
O professor destaca outro movimento: a “desconstrução” das formas de organização tradicionais. Via enfraquecimento dos sindicatos, aumento exponencial do subemprego e, consequentemente, da informalidade. “Esse tipo de circuito que aprisiona o trabalhador na pobreza e, muitas vezes, na extrema pobreza”, afirma.
A sociedade se reinventa e sempre procura novas formas de controlar o capital e de se relacionar com o Estado, observa Ana Cláudia. “Essas novidades não podem ocultar o que se mantém nessa sociedade”, emenda, citando o que considera modalidades diferentes de exploração em cada momento histórico: fordismo, taylorismo, toyotismo e agora, por exemplo, o “uberismo”.
A rigor, o mundo dos aplicativos não tem nenhum tipo de regulação e o trabalhadores não têm a quem recorrer. “O que acontece, para usar uma expressão antiga, é que os dados são viciados. A empresa regula quem ela cadastra, coloca para dentro quem ela quer, na quantidade que ela quer, definindo, modulando a competição entre os diferentes trabalhadores, e também regula o quanto ela quer pagar”, diz Ruy Braga, apontando a “posição monopolista” do setor.
A necropolítica e o discurso “moderno”
Além disso, entregadores de aplicativos são expostos ao coronavírus e aos acidentes. Segundo o professor, apesar de o trânsito ter diminuído, estão ocorrendo mais mortes. “Isso é necropolítica, porque as empresas não estão nem aí e o Estado também não.”
Não é apenas o discurso do empreendedorismo, mas de todas as instituições que defendem trabalhadores, afirma Ana Cláudia, como sindicatos e o próprio Ministério do Trabalho, extinto pelo atual governo. Ela vê ainda um “grande risco” de o atual home office se transformar definitivamente no teletrabalho, que tem uma “legislação péssima” no país”, sem limite de horas ou regras efetivas de saúde.
No caso da representação, cabe ao sindicato “se reinventar, se aproximar desse núcleo mais consistente do conflito”, diz Braga. O jogo mudou, o campo, as regras, os próprios jogadores. Além de adotar novas formas de comunicação, é preciso desconstruir a imagem formada do empreendedorismo. Esses trabalhadores “Não são autônomos, não são independentes”, aponta.
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