*Por Igor Corrêa Pereira
Quando a pandemia se abateu sobre o Brasil, encontrou 50 milhões de pessoas que não estão protegidas por um contrato de trabalho, além das 13 milhões de famílias desempregadas. Esta condição de informalidade, em que o trabalhador necessita ganhar sua renda diariamente e depende da circulação de pessoas, somado a um governo negacionista e irresponsável na condução sanitária, resultou na atual situação: o Brasil está prestes a alcançar os Estados Unidos em número de mortes por COVID-19.
Tal situação não é propriamente novidade. O fator novo é que parte desse proletariado vulnerável, em sua maioria composta por jovens, encontrou maneiras de se organizar e resistir. Emerge do seu seio manifestações antifascistas nas ruas. E para dia primeiro de julho, um marco importante, eles anunciaram a primeira greve dos entregadores de aplicativos.
Eles reivindicam direitos trabalhistas e acesso a equipamentos de proteção individual para garantir mais segurança contra a COVID-19, segundo informa o Brasil 247. Os entregadores de aplicativo trabalham em média doze horas por dia, carregando aquelas caixas de alimentos nas costas, para ganhar cerca de R$ 900 por mês. “Menos do que um salário mínimo, e menos do que um salário digno”, como lembra um vídeo elaborado pelo Meteoro Brasil.
Expostos ao risco do vírus, eles são o símbolo do que os especialistas têm chamado de “uberização das relações de trabalho”. O mais assustador é que esse fenômeno já não é a exceção, mas sim a regra. Hoje, no Brasil, existem mais vagas de trabalho precarizadas e informais, do que cobertas minimamente por direitos trabalhistas.
Os aplicativos de entrega exploram o trabalho desses entregadores sem assumir nenhuma responsabilidade, pois não há contrato de trabalho firmado. Esses aplicativos faturam uma fortuna em cima de uma falcatrua que não é permitida a um empregador convencional: o dono de um restaurante precisa contratar funcionários e arcar com despesas trabalhistas, pagar impostos; o aplicativo, não.
É como se o aplicativo fosse uma empresa e o entregador, outra. O entregador é chamado cinicamente de “microempreendedor individual”. Em tese, ele “colabora” com o aplicativo. É um colaborador, um parceiro. Faz o serviço se quiser, a hora que quiser. Lindo, né? Só que não.
A suposta liberdade de trabalhar quando quiser é mentirosa. Se o entregador não ralar doze horas ou mais por dia, não vai ganhar nem perto de um salário mínimo. Como sustenta a sua família? Como isso pode ser liberdade?
Outra coisa que fica escondida nessa relação perversa entre aplicativo e entregador, são as punições que o entregador pode sofrer e quais os critérios dessa repreensão. Existe o chamado “bloqueio branco”, que é quando o entregador sofre restrições que não podem ser explicadas por critérios técnicos.
O entregador Paulo Lima, também conhecido como Galo, denunciou em entrevistas a Rede Brasil Atual que, quando seu nome apareceu por ter se manifestado contra o aplicativo, ele foi bloqueado para fazer entregas. “O cadastro fica ativo, você fica online, mas não recebe nenhum pedido, nada chega para você”, relatou Paulo.
Este trabalhador, sem uma rede de proteção, como sindicato ou a justiça trabalhista, não tem nada a fazer, ninguém para socorrê-lo. Nem mesmo uma pessoa da empresa mostra a cara para lhe ouvir. Ele é atendido por robôs, que lhe dão respostas automáticas, e nenhuma solução.
A distopia dos filmes de ficção chegou à realidade. As pessoas são descartáveis e dispensadas sem nenhuma possibilidade de proteção.
Essa situação estava mais ou menos invisível até agora, pois esses trabalhadores não dispõem das mesmas condições de outras categorias para se organizarem. Mas em meio à pandemia, essa organização parece começar a surgir.
A paralisação anunciada para o próximo dia primeiro de julho é uma iniciativa desses entregadores para evidenciar que suas condições pioraram ainda mais com a chegada da pandemia.
Reivindicam o básico: melhor remuneração, auxílio saúde, seguro em caso de roubo, equipamentos de proteção individual que reduzam sua exposição ao vírus. Essa iniciativa da paralisação lança luzes sobre um drama invisível. É uma oportunidade para evidenciar que existe sim a relação patrão (aplicativo) e empregado (entregadores) e cobrar responsabilidades por parte das empresas.
Nós estamos assistindo mudanças que ocorrem em escala global, que vão transformando o trabalho informal numa regra. A chamada economia do bico, da informalidade, vai virando o novo normal. Qual a implicação disso? Como vai impactar outras categorias
Ora, nas universidades, espaços de formação de mão de obra qualificada, está em debate justamente a desregulamentação, a flexibilização por meio da educação remota, vendida como a grande novidade.
As disciplinas que falam do empreendedorismo, que cultuam o empresário de si, estão sendo aprovadas em todos os currículos, defendidas como o futuro. Que futuro é esse? Qual é a relação com esse presente sofrido já vivido pelos entregadores?
É por isso que a luta dos entregadores não é só deles. É a luta de quem precisa de seu trabalho para sobreviver. É a luta de quem tem pequenos negócios e assume responsabilidade por seus funcionários. É a luta de quem não quer que o país seja comandado por grandes oligopólios transnacionais sem rosto e agindo na sombra do mundo digital, enriquecendo às custas de trabalhadores precarizados. É a luta de quem quer emprego digno para todos e todas.
A greve dos entregadores do dia primeiro de julho deveria estar no calendário de toda a organização e pessoa que luta pela democracia, pela vida, pelos direitos sociais. É o momento de exercer na prática o valor da solidariedade.
Podemos contribuir com campanhas de conscientização nas redes e boicote aos aplicativos no dia primeiro de julho. Sejamos todos entregadores. A unidade é bandeira da esperança e só é um valor que se concretiza na prática e na ação.
* Dirigente da CTB/RS e membro da CTB Jovem