Por Lenio Luiz Streck e Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira*
Lemos na Folha de São Paulo que a Professora Clarissa Gross (aqui) considera que o Inquérito das fake news aberto pelo Supremo Tribunal é perigoso e pode ter como possível efeito a dissuasão da participação das pessoas no debate público.
Além de contestar o poder de o STF instaurar o inquérito, ela diz que discursos contra ministros do STF, mesmo que usem de linguagem de ameaça, não necessariamente devem ser punidos, verbis: “A meu ver, depende do contexto, o que quero dizer com isso? A ameaça tem que ser crível. Ela tem que ser feita por alguém num contexto que traga indícios que a pessoa de fato terá condições de tomar medidas para impedir o exercício da magistratura pelos ministros do STF.”
Para ela, inclusive discursos que defendem o fechamento do Supremo deveriam ser protegidos pela liberdade de expressão. “Por mais que elas não tenham o direito de implementar, eu acho que elas têm o direito de defender essa ideia.” Por exemplo, se alguém escreve: ‘Cuidado, ministros do STF, como vocês vão se comportar em relação a uma ação x. E a depender do que fizerem, nós vamos derrubar vocês’”.
Disse ainda que “a defesa de convicções que contrariam a tese de base do Estado democrático de Direito não viola por si só esse Estado democrático de Direito e o seu funcionamento”.
Não vamos discutir aqui se o STF poderia ou não ter aberto o inquérito. Já dissemos que sim, o STF poderia ter aberto, pois estava sob Contempt of Court (ver aqui). E o próprio STF assim o reconheceu, por 9×1.
Queremos discutir a tese defendida pela Professora Clarissa. Qual é o limite e a diferença dos discursos de ódio, de contestação e de críticas na democracia? Ou à Suprema Corte, que detêm institucionalmente a última palavra na democracia? E com relação ao fechamento do Congresso? Deputados podem usar o direito à informação para falar contra a democracia? Tudo é válido?
Achamos que, ao contrário do que pensa a Professora, não é perigoso o STF abrir o inquérito e temos a convicção de que isso não prejudica a democracia. Ao contrário, protege-a. Perigosa poderá ser a tese de se defender o que seria um certo excesso de “liberalismo” autoritário, complacente com a violência. Explicaremos.
Impressiona-nos como muitas pessoas ainda acreditam que a liberdade de expressão diz respeito somente ao falante, além de desconhecerem, por exemplo, que a liberdade de expressão nos EUA não começou na década de 1960.
Liberdade de expressão sem crítica aos contextos, sem considerar os atingidos, como se ela pairasse acima e além da história, parece-nos um equívoco. Equívoco histórico, político e jurídico.
Indagamos: No andar da carruagem, se não se fizer a diferença entre liberdade de expressão e discurso de ódio, entre liberdade de expressão e disseminar mentiras, entre liberdade de expressão e racismo, mas também entre liberdade acadêmica e negacionismo, etc, daqui a pouco será possível dizer que injúria, calúnia, difamação, além de incitação ao crime ou falsidade ideológica, etc, não seriam mais crimes, mas mera liberdade de expressão? Como se alguém tivesse o direito de mentir, de agredir, de injuriar, de infligir dor e sofrimento às/aos outros/as, ainda que com palavras.
Palavras são atos! John L. Austin, o linguista, já dizia isso há mais de 50 anos. E estão aí os movimentos sociais que corretamente criticam certas interpretações por demais frouxas da liberdade de expressão (liberdade de expressão contra a democracia? Contra direitos humanos? Contra grupos vulneráveis?) para dizerem que palavras não são meras palavras. Vistas, no seu contexto concreto, no espaço público principalmente, e considerando a perspectiva dos destinatários, dos ouvintes, palavras-em-ato podem ser agressões, violência, discriminação nada compatíveis com a democracia.
Não faz muito, houve uma polêmica sobre se se podia dizer que os direitos humanos são esterco. Duramente, dissemos que não. Um rotundo não. O ponto era a prova do ENEM. Nosso artigo está disponível na ConJur. Ali dissemos que o excesso de liberalismo autoritário pode gerar violência. Ao defender que se pode dizer qualquer coisa podemos passar a mensagem, para toda a sociedade, de que o sistema constitucional das liberdades não se preocupa em situar a dor daqueles destinatários de falas ofensivas, em si mesma excludentes, ainda que postas em uma “folha de redação”.
Ou seja, entendemos que o aplicador do direito deve buscar problematizar a mensagem que sua decisão possa estar encaminhando tanto aos que proferem os discursos de ódio, quanto aos seus destinatários, sob pena de, ainda que nas entrelinhas, edificarmos simbólicas indiferenças perante grupos que, historicamente, têm sido os mais atingidos por tais discursos odiosos.
Essa linha argumentativa, a qual não desconsidera as preocupações quanto ao sempre presente risco de censuras, não ignora a essencialidade da liberdade de expressão para a conformação de um Estado Democrático de Direito e assume que podemos dizer e escrever o que quisermos, mas que também podemos ser responsabilizados e cobrados por tudo o que expressarmos, sendo essa a distinção entre uma ilegítima censura e um ato posterior de responsabilização, entre uma mordaça e a garantia de não ser discriminado e humilhado, ou seja, de sermos reconhecidos como iguais em nossas diferenças.
Mas é recuperando o leading case sobre as fronteiras da liberdade de expressão diante de possíveis discursos de ódio, qual seja, o HC 82.424/RS, o chamado Caso Ellwanger, em que vamos encontrar toda uma série de argumentos que sintetizam o nosso caminho, pois, ainda que tenha sido uma decisão por maioria, o Supremo Tribunal Federal, naquele julgamento, assentou que o
[…] preceito fundamental da liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra […] (HC 82.424/RS, 2003, p. 526).
Assim, no chamado Caso Ellwanger, o Ministro Relator Maurício Correa diferenciou, de um lado, a liberdade de expressão e, de outro, manifestações de racismo como formas de racismo social, ou seja, como toda forma de discriminação e de preconceito inferiorizantes, como uma violação de direitos constitucionais e dos objetivos fundamentais da República, entre eles, aquele segundo o qual, nos termos do art. 3º, IV, da Constituição, devemos permanentemente “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.
Em linha confluente, o então Ministro Carlos Velloso, anotou que “[…] não pode a liberdade de expressão acobertar manifestações preconceituosas e que incitam a prática de atos de hostilidade contra grupos humanos[…]” (p. 689).
Por sua vez, o Ministro Celso de Melo, sempre reiterando a possibilidade de abusos no exercício da liberdade de expressão — e abuso é ilícito! —, afirma que esses atos abusivos se expõem a responsabilização “a posteriori”, haja vista que
se assim não fosse, os atos de caluniar, de difamar, de injuriar e de fazer apologia de fatos criminosos, por exemplo, não seriam suscetíveis de qualquer reação ou punição, porque supostamente protegidos pela liberdade de expressão. (STF, Min. Celso de Mello, HC 82.424/RS, 2003, pp. 928-929)
Em suma, vê-se que a liberdade de expressão não é incondicionada, haja vista que se a Constituição de 1988 veda, enfaticamente, toda forma de censura, não dá guarita para aqueles que levantam pretensões não validáveis discursivamente, pois não há um direito constitucional que garanta o fomento de ofensas.
Daí que não devemos subestimar as consequências dessas mensagens enviadas à sociedade, haja vista que qualquer decisão emitida indica a posição institucional sobre dado assunto, podendo, de acordo com a linha argumentativa predominante, ser socialmente traduzida como vedação ou autorização a certos discursos.
Apropriando-nos de argumentos de Charles Lawrence (1990, p. 436), o STF deve, em suas decisões, considerar não só os direitos dos “falantes”, mas, também, os iguais direitos dos “ouvintes”, dos destinatários dos discursos, ainda mais quando esses são de profunda aversão e ódio aos últimos.
Há algo na Constituição da República que pode ser visto e que também pode ser ignorado, dependendo de como se a lê. Há um dispositivo implícito que diz: esta Constituição não pode ser lida de forma a que sua interpretação seja autocontraditória.
Para sermos mais diretos: está vedada a contradição jurídico-performativa. Assim como não posso dizer “eu estou morto”, também não se pode afirmar qualquer coisa sobre qualquer coisa.
Ou seja, liberdade de expressão é direito e discurso de ódio é ilícito. Isso porque a liberdade de expressão deve pressupor, como todo direito, o reconhecimento mútuo da igualdade entre cidadãs e cidadãos que participam do debate público, numa democracia. A liberdade de expressão envolve o direito de dizer e de ser ouvido, de não ser desconsiderado ou desprezado, é liberdade de comunicação, portanto, que se justifica numa relação de reciprocidade. Ainda que os sentidos das exigências de liberdade e de igualdade possam ser parte da própria controvérsia pública, não se pode desconsiderar, sobre o pano de fundo de um longo processo de aprendizagem social com inúmeras experiências de históricas injustiças e de violências, o que, pelo menos, liberdade e igualdade não significam.
A história do século XX já nos mostrou o quanto não podemos ser complacentes com certos excessos de “liberalismo”, no fundo, ele, sim, autoritário, porque a democracia não pode ser tolerante com a violência.
Palavras são atos. Em nome da liberdade de expressão, não se pode defender acabar com ela. Assim, está vedado, como condição de possibilidade de, em nome de uma suposta liberdade de expressão alguém se volte exatamente contra as próprias bases do Estado Democrático de Direito. E isso está vedado sob pena de autodestruição.
Portanto, faz-se coisas com palavras. Por vezes, horríveis. Até mesmo contra o direito de dizer… palavras.
Lenio Luiz Streck é jurista, professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do escritório Streck e Trindade Advogados Associados: www.streckadvogados.com.br.
Marcelo Andrade Cattoni de Oliveira é professor titular de Direito Constitucional da Faculdade de Direito da UFMG, doutor e mestre em Direito pela mesma instituição.
Fonte: Conjur