Por Marcos Aurélio Ruy
Não à toa o filme “Assunto de Família”, dirigido por Hirokazu Koreeeda, também responsável pelo roteiro, ganhou a Palma de Ouro, principal prêmio do renomado Festival de Cannes, em 2018. Centrado em uma família nada convencional, o cineasta japonês trata de diversos temas caros ao capitalismo e à humanidade.
Disponível na Netflix, a obra, de 2018, apresenta toda a complexidade de uma sociedade baseada na superexploração do trabalho pelo capital e de como as relações humanas são deturpadas pelo sistema patriarcal não vencido pelo grande avanço tecnológico. A crise do capitalismo de 2008 ainda incide em grandes retrocessos e no crescimento da desigualdade social.
Veja o trailer oficial do filme
Com uma montagem impecável, o filme transcorre ao contar a história de uma família que vive na pobreza, numa casinha de praticamente um cômodo, habitada por cinco pessoas, o pai Osamu (Lily Franky), a mãe Mobuyo (Sakura Andô), a avó Hatsue (Kiki Kirim), a filha mais velha Kie (Chizuro Ikemaki) e o adolescente Shota (Sosuke Ikematsu).
Felizes porque a felicidade custa pouco. Depende mais de afeto, compreensão e confiança. A família Shibata ganha mais um membro ao se deparar com a pequena Yuri (Miyu Sasuki) sozinha no gélido frio de Tóquio, capital do Japão. A menina é acolhida porque onde passam fome cinco, passam fome seis pessoas.
As cicatrizes de Yuri denunciam os maus-tratos causados pelos pais de sangue. Para mostrar um conceito de família muito além da questão sanguínea.
Koreeda vai mais longe ao apresentar o afeto como resistência à opressão e às desigualdades sociais numa sociedade dita como exemplo de conduta pelo mundo capitalista, tamanha opressão ao indivíduo.
Se ficasse com esses temas, “Assunto de Família” já se constituiria numa obra prima, mas Koreeda aprofunda a crítica ao sistema ao denunciar a violência doméstica, mesmo em classes sociais onde a sobrevivência não custa tão caro. O que significa que a pobreza não é a causa de todos os males. Ela é sim causada pelos males da desumanização de um sistema que vive da desigualdade e da exploração da força de trabalho de quem não tem mais nada para vender.
Mostra ainda como as pessoas precisam garantir a sobrevivência em meio à miséria. A exploração do trabalho infantil entra em cena quando Osamu leva Shota para ensinar-lhe a praticar furtos em supermercados e lojas, mais tarde com a companhia da pequena Yuri. A opressão à mulher quando a jovem Kie prostitui-se para ajudar no orçamento doméstico e quando a “verdadeira” mãe de Yuri apanha do marido e desconta na filha, isso em outra família.
O filme surpreende com uma reviravolta inesperada. Uma pedra no caminho da família Shibata aparece para desnudar todos os fios da meada desse roteiro muito bem engendrado. Fica a esperança de tudo mudar no olhar da pequena Yuri no apartamento da sua família consanguínea abusiva e quando Shota finalmente chama Osamu de papai, mesmo sem que ele possa ouvir o que tanto queria.
A esperança é o fio condutor desse grande filme. Esperança de que as famílias entendam que seus assuntos devem ser tratados com liberdade, carinho e respeito. Mais ainda, que as famílias podem juntas mudar um sistema que oprime todas as famílias trabalhadoras.