Por Marcos Aurélio Ruy
Com delicadeza e poesia, o filme francês “Sementes Podres” (2018), dirigido e protagonizado por Kheiron, produzido pela Netflix, trata das agruras enfrentadas pela parcela da juventude negligenciada pela sociedade, no caso filhas e filhos de imigrantes num país do Primeiro Mundo.
O filme questiona o conceito de “sementes podres” para crianças e jovens com dificuldades de adaptação a uma realidade que insiste em podar seus sonhos e a possibilidade de um futuro diferente do pré-determinado pelo Estado repressor.
É o extermínio da família do protagonista, o menino Waël (Kheiron), pelo exército de Israel, muito provavelmente na Palestina. O menino se vê sozinho no mundo, obrigado a encontrar formas nada ortodoxas de garantir a sobrevivência.
Waël é acolhido numa escola mantida pela igreja católica em algum lugar do Oriente Médio e faz amizade com o menino católico Joseph. A segunda tragédia em sua vida, quando Joseph é abusado sexualmente e decide morrer.
Waël, então, questiona a existência de Deus. Ao menos desse Deus nada bom que permite acontecer coisas ruins com inocentes crianças? Bem complicado explicar a existência de um Deus do bem num contexto desses.
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Parece banal, mas Kheiron consegue realizar uma obra sutil e inteligente. Ele conta em uma entrevista que começou com a frase do escritor francês Victor Hugo (1802-1885): “Lembrai-vos sempre de que não há ervas daninhas nem homens maus: — há, sim, maus cultivadores”, ou seja um sistema destruidor da natureza, da vida e das relações humanas.
A seguir o cineasta iraniano complementa afirmando que “nós não nascemos delinquentes, nos tornamos isso. No entanto, os ‘cultivadores’ não são apenas os pais: depois dos nove meses de gravidez, uma criança pertence a todos. Para mim, os ‘cultivadores’ são toda a sociedade”.
De forma delicada, “Sementes Podres” consegue mostrar na tela, a necessidade do afeto, do respeito e do diálogo livre para a juventude encontrar o seu caminho em meio à selva de pedra que se tornaram as cidades grandes em qualquer parte do mundo capitalista.
O menino acaba levado para Paris, França, pela freira Monique (Catherine Deneuve) e já adulto permanece com formas nem um pouco ortodoxas de sobrevivência, agora ajudado por Monique, uma verdadeira mãe para ele.
Acabam num projeto de reforço escolar para jovens inadaptados ao sistema educacional francês. A maioria pertencente a famílias de imigrantes forçados pela guerra ou pela degradação da vida em países do Terceiro Mundo.
Aí o questionamento vai mais longe. Quem são as sementes podres? Os adolescentes ignorados pelo sistema com suas famílias em constantes dificuldades financeiras ou o policial corrupto que explora um garoto, com mãe doente, tendo de cuidar sozinho dos irmãos mais novos, obrigado pelo policial a traficar drogas? É podre a adolescente com seus sonhos de uma vida diferente da de sua mãe ou o homem (pai ou padrasto) que a estupra?
É podre o menino que teve sua família dilacerada pela ganância e ignorância ou o padre que abusa sexualmente dessa criança? São podres o jovem e a senhora que roubam para sobreviver ou o governo que nega financiamento para projetos educacionais com vistas a dar oportunidades aos jovens sem chance no sistema?
Esses são os ingredientes desse filme simples, leve, mas nada superficial. Todas as histórias estão inter-relacionadas como é a vida. Nada acontece por acaso, mas tudo tem a sua história.
Fica a reflexão sobre o que estamos fazendo com as crianças e com a juventude. Que futuro esperar se nada mudar? “Sementes Podres” é esperançoso de que tudo pode mudar. Depende do engajamento de todo mundo como nos mostram as massivas manifestações antirracistas nos Estados Unidos.