Por Alex Saratt para o Brasil 247
Se houver um ou outro consenso, tanto melhor, mas não nos iludamos. Só “somos 70%” quando fazemos valer a porcentagem em atitudes práticas, senão será apenas um numerário a se lamentar num futuro incerto.
Não erra quem contesta ou questiona a chamada “Somos 70%”, afinal esse é um dado frio como costumam ser os números estatísticos. A soma de todos os tipos e graus de insatisfação chega a esse patamar. Nos diz alguma coisa, mas não resolve automaticamente problema nenhum. Nos EUA surgiu há uns anos atrás os “99%”. Não foi o suficiente para mudar substancialmente o estado de coisas daquele país e sociedade, mas é possível reconhecer e atribuir os “riots” desencadeados após o assassinato do cidadão negro George Floyd a um movimento de ideias que já pariu o Ocuppy Wall Street, Black Live Matters, os Antifa, Bernie Sanders, entre outras ações de envergadura social e histórica ímpares.
A verdade é que hoje “são 70%” dos brasileiros que avaliam o Governo Bolsonaro como péssimo, ruim ou regular. No entanto, apenas 50% apoiaram hoje um afastamento do Presidente. Mas o fato real e concreto – e não mera idealização, voluntarismo ou devaneio – é que lentamente se constitui uma base que pode dar combate ao golpe anunciado e ao fascismo que lhe acompanha como conteúdo e propósito.
A crise econômica que se aprofunda e se espalha, o destrato com a questão da saúde pública em tempos de uma pandemia letal e as revelações dos bastidores e subterrâneos de um Governo obcecado com o próprio poder e benefício, alheio aos interesses e necessidades do Povo e da Nação, criaram um conjunto de situações capazes de unir amplos e variados segmentos da sociedade, de distintos espectros políticos, partidários e ideológicos para antagonizar o extremismo fascista, miliciano, fundamentalista.
Nada está dado, trata-se de um processo e movimento recente, nascido do horror provocado pelos discursos e práticas que atentam contra a vida nacional, societária e minimamente democrática. Para passar do “são” para o “somos” é preciso ir além da ojeriza, repulsa e náusea ética e conscienciosa, faz-se urgente construir um organismo unitário, com centro de pauta, debate e decisão comum, articulando a oposição política e, se for viável, um programa básico pactuado em torno da Vida, Democracia, Cidadania, Direitos, Desenvolvimento e Soberania.
Um conhecido apresentador de televisão usa um termo chulo para definir certas vantagens eróticas: “melhor um pequeno brincalhão do que um grande bobalhão”. Noves fora a grosseria, um tanto do que está em jogo tem lógica próxima: nada adianta ter uma suposta maioria se esta não suporta e encaminha uma luta consequente, determinada e incansável para barrar, vencer e superar a ofensiva da Extrema-Direita
Sendo 70% seremos quantos mesmo ao fim e ao cabo? Quem são aqueles que dizem agora que somos? Com quais ferramentas e métodos pretendem intervir na realidade? Afirmar que “estamos juntos” implica assumir quais compromissos, riscos e consequências? A ideia-força tem potencial e validade, reúne indistintamente adversários políticos, desafetos e mágoas, porém parece buscar uma solução justa.
Aos que temem os 70%, um lembrete: em 2018 fomos 45%! O que tememos, então? Em tese, seríamos maioria nos 70%. Será que é muito difícil, impossível mesmo, ser amplo, não trabalhar na lógica da bipolaridade política e deixar as revanches para um outro momento e disputa? Fico pasmo com a ideia propugnada por alguns de que estamos melhores no isolamento do que no movimento real – e não o ideal – das coisas.
Oportunidades e condições como as surgidas nesse diapasão histórico são raríssimas. Sinergia, força centrípeta e objetividade seriam fundamentais para o êxito dessa iniciativa. Pendências, dispersão e particularismos, de modo avesso, significam perda. Não nos servem profissões de fé, proselitismos ou fraseologias, afinal a frouxidão e vacilação de comando dirige a tropa para a carnificina. Não podemos nos dar ao luxo de desperdiçar essa excepcional formatação político-organizativa num momento dramático como o que passamos. Eleger um item convergente bastaria para pôr em marcha a saída democrática. Se houver um ou outro consenso, tanto melhor, mas não nos iludamos. Só “somos 70%” quando fazemos valer a porcentagem em atitudes práticas, senão será apenas um numerário a se lamentar num futuro incerto.
Alex Saratt é professor de História nas redes públicas municipal e estadual em Taquara/RS e dirigente sindical do Cpers/Sindicato.
Foto: reprodução mídia ninja