Assim como em 1918, durante a pandemia da gripe espanhola, Belo Horizonte vem conseguindo manter baixos índices de contaminação ou mortes provocadas pelo coronavírus, se forem considerados os números de outras capitais. O fenômeno ocorre, principalmente, devido à adesão da população às recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) mas, sem dúvida, para que isso ocorra pesou o pulso firme do prefeito Alexandre Kalil (PSD), que não poupou peitar aqueles que se colocaram contra as medidas adotadas, como foi o caso dos bolsonaristas.
Já no dia 18 de março a capital mineira era a primeira cidade a adotar o isolamento e, neste sábado, 30, colhia os frutos da iniciativa ao registrar 49 mortes provocadas pela covid-19 e 1.729 infectados pela doença, números abaixo da média e menor também do que cidades como Praia Grande (SP), com 51 mortos, ou Jundiaí (SP), com 52, por exemplo. É claro que sempre aparece alguém com desconfiança a reclamar de subnotificação, mas o fato é que os leitos hospitalares seguem com uma ocupação girando em torno de 50% e não há registro de aumento significativo de sepultamentos em Belo Horizonte.
Com os números obtidos, a prefeitura pôde até se dar ao ‘luxo’, digamos assim, de autorizar que a partir do dia 25 de maio poderiam ser reabertos estabelecimentos comerciais como os shoppings populares (sem ar refrigerado), e lojas com portas de entrada viradas para ruas e avenidas, como papelarias, lojas de móveis, artigos de iluminação, tecidos e armarinho, por exemplo, obedecendo a normas rígidas. A população entendeu, continuou em casa, e a vida seguiu sem maiores transtornos na capital mineira.
Empresário do setor de pavimentação. o prefeito Alexandre Kalil anunciou nessa sexta-feira, 29, que não vai permitir a reabertura de mais setores do comércio na próxima semana, como se cogitava. “Não é uma notícia que eu queria dar. Eu queria que fôssemos abrindo, abrindo e abrindo”, disse. Ele explicou que a decisão foi tomada após muito debate entre técnicos da equipe de combate à pandemia de coronavírus na capital. “Fiquei assustado com o que eu vi. Se BH fosse uma ilha, nós poderíamos flexibilizar à vontade, mas não somos ilha”, afirmou ao destacar que o crescimento de casos no interior do estado impede, neste momento, que a cidade flexibilize o isolamento social e permita a reabertura de mais setores econômicos.
A decisão, claro, irritou os diretores da Câmara dos Dirigentes Lojistas: “É muito mais barato fazer leito de hospital do que recuperar a economia de uma cidade como Belo Horizonte”, defendeu o presidente da entidade, Marcelo Souza e Silva. Mas mais uma vez Kalil se mostrou firme, afinal tudo o que a prefeitura conseguiu até agora só foi possível graças à firmeza do prefeito que, falando alto e como um paizão, como é bem de seu estilo, tomou a frente no contato com a população e acabou sendo ouvido.
De certa forma isso não foi tão difícil para ele. Filho do ex-presidente do Clube Atlético Mineiro, o Galo, Elias Kalil, Alexandre também foi presidente do clube por dois mandatos, dos quais saiu carregado nos braços dos torcedores após conquistar a Copa Brasil e a taça da Copa Libertadores da América para o Galo em 2013, um sonho antigo.
Twiteiro
Já naquele período Kalil mostrava sua facilidade de comunicação com a ‘massa atleticana’ ao usar o Twitter para se dirigir a um grande número de torcedores. Por isso, ao deixar o futebol para entrar na política em 2016 não encontrou dificuldade para se eleger prefeito de Belo Horizonte, mesmo sem experiência na área. E, agora, com 1,262 milhão de seguidores, o Twitter serviu ao prefeito como excelente ferramenta para se comunicar com a população ao trocar o tema futebol pela pandemia, e assim está sendo feito.
O certo é que Kalil conseguiu colocar a população dentro de casa, apelando por todos os meios. E se a sua reeleição já estava bem pavimentada, agora ficou mais facilitada ainda. Mas teve trabalho para conseguir se impor. Teve que fechar todos os parques e praças da cidade, teve de fechar rodovias para impedir o trança-trança de carros nas cidades vizinhas, onde os churrascos corriam soltos, e teve de botar pra correr, literalmente, os bolsonaristas que protestavam contra a decisão de fechar o comércio. Seu apartamento no bairro de Lourdes acabou até mesmo sendo alvo de manifestações de bolsonaristas, que acabaram expulsos à base de ovos disparados por vizinhos.
Com a postura adotada pelo prefeito, logo os bons resultados começaram a aparecer. Um levantamento feito pelo infectologista e epidemiologista Carlos Starling, pelo engenheiro de produção Joaquim José da Cunha Júnior e pelo doutor em bioengenharia, Bráulio Couto entre os dias 16 de março e 7 de abrikl mostrou que o isolamento social determinado pela prefeitura evitou que 2.128 casos de contaminação pelo novo coronavírus no período. “É uma amostra representativa e esse número deve ser muito maior. Estamos evitando um percentual de mortes muito significativo”, festejava Starling.
O levantamento mostrava um comparativo da curva de infecções em BH, na Itália e na Suíça. Nos países europeus, os casos esperados de covid-19 eram muito superiores se confrontados aos da capital mineira. “Temos conseguido manter em níveis muito mais baixos e uma curva muito menos íngreme do que temos na Itália, Suíça e nos Estados Unidos”, observou o epidemiologista na ocasião.
“Há uma consciência muito maior na periferia do que nos bairros elegantes de Belo Horizonte. Isso é o que temos visto, temos notado e temos sido notificados pela Guarda Municipal e pela Polícia Militar”, dizia Kalil no último dia 29 de maio, quando anunciou em entrevista coletiva a suspensão de reabertura de novos setores do comércio. O prefeito teme os reflexos do crescimento de casos no interior do estado. “Belo Horizonte é a única que não exporta casos. Ela vai ser infectada e vai ser demandada de fora para dentro. É a única do país em que vai acontecer isso. Se Belo Horizonte fosse uma ilha, nós poderíamos flexibilizar à vontade. Mas nós não somos uma ilha. Estamos em estado de guerra”, ponderou.
Gripe espanhola
A gripe espanhola, que na verdade surgiu nos Estados Unidos, matou entre 20 a 50 milhões de pessoas em todo o mundo a partir de 1918. Em Belo Horizonte a peste provocou 282 mortes entre seus 45 mil habitantes, um número bem abaixo dos registrados em inúmeras cidades brasileiras e da Europa, segundo estudos da historiadora mineira Heloísa Starling, da UFMG.
A gripe desembarcou no Rio de Janeiro provavelmente no dia 14 de setembro. Veio de Lisboa no barco “Demerara” que atracou no porto com gente doente a bordo. Os tripulantes desceram na Praça Mauá sem que ninguém prestasse muita atenção, mas já estavam contaminados e contaminando. Pouco depois, a gripe chegou a São Paulo vinda do Rio de Janeiro e cinco mil paulistanos morreram até o final de dezembro.
Em Belo Horizonte, a gripe espanhola durou três meses. A população girava em torno de 45 mil habitantes e a doença derrubou cerca de 15 mil pessoas. “Os registros apontam 282 mortes, mas faltam dados. Quantos faleceram fora dos hospitais? Quantos óbitos foram notificados? Não sabemos”, diz Heloísa Starling.
No dia 7 de outubro, um oficial da Vila Militar, no Rio de Janeiro, desembarcou na Praça da Estação da capital mineira junto com a família. Instalaram-se, numa casa do bairro da Floresta e, dois dias depois, os primeiros sintomas da gripe espanhola apareciam. “Quem morava no bairro entrou em pânico assistindo à chegada dos enfermeiros responsáveis pela transferência imediata dos doentes para o Hospital de Isolamento, e dos funcionários da Diretoria de Higiene, o equivalente hoje à Secretaria de Saúde, devidamente paramentados, transportando, em carroças da prefeitura, o equipamento para desinfecção da casa”, contou a historiadora Heloísa Starling em trabalho encomendado pelo portal G1.
O médico Samuel Libânio, responsável pela Diretoria de Higiene, suspendeu o comércio e ordenou o fechamento das lojas; os proprietários obedeceram, mesmo a contragosto. As ruas ficaram vazias, cafés e bares, cinemas, clubes e casas de diversão às moscas, a circulação dos bondes foi reduzida. Os estabelecimentos de ensino suspenderam as aulas, inclusive as faculdades. Tudo ficou deserto, menos as farmácias, onde uma multidão se aglomerava em busca dos medicamentos que começavam a faltar.
“Em Belo Horizonte, a gripe espanhola se alastrou indiferente pelos bairros. Os hospitais não dispunham de capacidade para receberem tantos doentes ao mesmo tempo, e era urgente criar um serviço de hospitalização para mendigos e para a população pobre. Havia dificuldades de abastecimento, risco de desemprego, queda no volume de negócios, perigo de falência, desestruturação dos elementos que constroem o cotidiano das pessoas. Quem não era funcionário público, não recebia salário mensal e vivia exclusivamente do trabalho diário, ficou em situação precária, iam faltar recursos. Não existia remédio disponível para todo mundo e as pessoas não podiam dominar a epidemia, mas descobriram que era possível juntar esforços para tentar combatê-la”, observa Heloísa Starling.
Covid em Minas
Se a covid-19 sofre um bom combate em Belo Horizonte, o mesmo não se pode dizer do estado de Minas, cujo governador, Romeu Zema, do Novo, desdenhou a peste e obrigou o prefeito Alexandre Kalil a ter uma queda de braços entre os dois chefes do Executivo. Zema segue a cartilha bolsonarista, não gastou um centavo em publicidade para esclarecer a população quanto ao perigo da doença, fez de tudo para amanter o comércio aberto, afinal, ele é dono de uma cadeia de lojas de eletrodomésticos, mas acabou vencido pela boa postura adotada pelos prefeitos dos 853 municípios mineiros.
Os números de Minas são baixos se comparados a outros estados, mas podem se esconder sob muitas sub notificações. Conforme estudos da Universidade Federal de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, de janeiro a abri, morreram 201 pessoas cujos atestados de óbitos registravam como causa a Covid-19. No mesmo período, 539 pessoas faleceram no estado por síndrome respiratória aguda grave (SRAG), ou seja, com sintomas semelhantes à doença provocada pelo novo coronavírus. Em comparação com os últimos anos, foi registrado um aumento de 648,61% do número de mortes por SRAG neste ano, o que pode indicar que há subnotificação de casos de Covid-19 no estado.
Os dados foram estudados por um grupo de cientistas da Universidade, coordenados pelo professor Stefan Vilges de Oliveira, da Faculdade de Medicina. “Nós analisamos os óbitos que tenham causas com alguma compatibilidade clínica com Covid-19 e, eventualmente, estariam sendo registrados de forma errônea, por exemplo, por indisponibilidade de diagnóstico laboratorial”, explicou.