Por Cézar Xavier, Jornal Tornado, de Portugal
Os governos devem agir para conter a violência contra enfermeiros que trabalham com pacientes de Covid-19. O Brasil é o país onde mais morreram profissionais de enfermagem na pandemia, até agora.
A violência contra enfermeiras e outros profissionais de saúde sempre foi um problema sério, mas nunca deve ser aceito como parte do trabalho, afirma um artigo publicado hoje no The Lancet, em co-autoria do diretor executivo do Conselho Internacional de Enfermeiras (ICN) Howard Catton. O artigo exorta os governos a agirem rapidamente para proteger os enfermeiros da linha de frente da violência e dos abusos e faz recomendações concretas.
Nas últimas semanas, a ICN tem ouvido de sua rede de associações nacionais de enfermeiros informações altamente preocupantes sobre o aumento da violência direcionada especificamente a enfermeiros e outros profissionais de saúde que estão na linha de frente da pandemia do Covid-19.
Os enfermeiros foram ostracizados, abusados e até fisicamente atacados porque mantiveram contato próximo com pacientes da covid-19. Não obstante que esses ataques são completamente inaceitáveis sob quaisquer circunstâncias. Essa violência exacerba estresse e burn-out (colapso nervoso) sem precedentes relacionados à Covid-19 que profissionais de saúde e suas famílias estão experimentando nessa pandemia.
Do Oriente ao Ocidente
No Brasil, ataques e insultos se tornaram frequentes na vida dos profissionais de saúde e multiplicam-se os casos em que eles são impedidos de acessar o transporte público para voltar para sua casa ou cidade. Outros receberam mensagens anônimas nas quais seus vizinhos lhes pedem que se mudem enquanto a pandemia dura por medo de serem infectados.
Em Brasília, enfermeiros que fizeram uma manifestação em homenagem a um colega morto, foram atacados de forma inesperada por correligionários do presidente Jair Bolsonaro, que minimiza a doença, critica o isolamento social e credibiliza teorias da conspiração.
Enfermeiras e médicos foram atacados com ovos e agredidos fisicamente no México. Um médico foi espancado por impedir familiares de entrar numa área de quarentena onde o doente havia morrido. Uma enfermeira teve os dedos quebrados. Outro foi banhado em água sanitária dentro de um shopping center. Os relatos ainda incluem manifestações de repulsa e nojo com pessoas se afastando dos enfermeiros quando estes se aproximam.
A dimensão da violência contra profissionais de saúde (e até trabalhadores de supermercados) chegou a tal nível no México, que o presidente precisou se manifestar e foram criadas brigadas de proteção a estes profissionais. Até soldados do Exército se juntaram às tarefas de vigilância em alguns pontos. Hospitais providenciaram transporte próprio e hotéis foram cedidos para enfermeiros que queiram se refugiar das agressões.
Segundo dados do Conselho Nacional de Prevenção da Discriminação no México (Conapred), desde 19 de março até a última segunda-feira, foram recebidas 97 reclamações deste tipo, sendo que acredita-se em subnotificação.
Nas Filipinas, uma enfermeira teria sido atacada por homens que derramaram água sanitária em seu rosto, prejudicando sua visão. Em um incidente chocante, um homem teria atirado em um motorista de ambulância na semana passada na província de Quezon, nas Filipinas. O agressor estava preocupado com o fato de o veículo entrar em uma subdivisão e espalhar o vírus, informou o hospital. O motorista sobreviveu, com um ferimento no dedo.
Em toda a Índia, relatórios descrevem os profissionais de saúde sendo espancados, apedrejados, cuspidos, ameaçados e despejados de suas casas. Estes são apenas alguns exemplos entre muitos em vários países, incluindo EUA e Austrália. Uma enfermeira de Chicago disse ao canal de TV local ABC7 na semana passada que havia levado um soco nos olhos de um ônibus público por um homem que a acusou de espalhar o vírus. Em partes da Austrália, os hospitais estão pedindo aos enfermeiros que não usem seus uniformes em público, para evitar ataques.
Manifestantes em Abidjan, capital comercial da Costa do Marfim, tentaram destruir um centro de testes de coronavírus em construção na segunda-feira. Vídeos nas mídias sociais mostraram pessoas arrancando tábuas de madeira da estrutura enquanto a polícia disparava bombas de gás lacrimogêneo. Alguns disseram a repórteres que não queriam a instalação tão perto de suas casas. “Eles querem nos matar”, disse um deles à Reuters. Funcionários do Ministério da Saúde disseram que o centro não foi projetado para tratar pacientes com covid-19, a doença que o vírus causa, mas sim para testar o vírus.
Medidas urgentes
O artigo da Lancet também descreve as ações necessárias para proteger os enfermeiros que trabalham na linha de frente da pandemia. Catton, que escreveu o artigo com colegas da Physicians for Human Rights e da World Medical Association, disse:
“Quaisquer que sejam as razões para tal agressão e violência, e suspeito que grande parte disso seja resultado de desinformação e ignorância, as enfermeiras estão sendo colocadas em risco aumentado no momento em que suas comunidades precisam delas mais do que nunca.”
Durante um webinar recente da ICN com enfermeiras da América Central e da América Latina, uma enfermeira do México disse que ela e seus colegas foram excluídos por membros de sua comunidade.
Ela disse que muitas pessoas no México acreditavam que a covid-19 era uma farsa ou temiam que os enfermeiros estivessem espalhando a infecção na comunidade. Seus colegas haviam sido borrifados com água sanitária ou jogado café quente neles a caminho do trabalho.
Catton avalia:
Os enfermeiros já estão em uma situação de alto risco, especialmente aqueles que trabalham próximos a pacientes com Covid-19 sem equipamento de proteção individual adequado. Mas o fato de que eles temem ataques físicos e abusos em suas viagens de ida e volta ao trabalho é completamente inaceitável. Estamos pedindo aos governos que adotem uma abordagem de tolerância zero e que imediatamente tomem medidas para interromper esses ataques e proporcionar uma passagem segura a esses trabalhadores-chave, para que possam ter a paz de espírito que merecem. Assim como nas taxas de infecção entre os profissionais de saúde relacionados ao covid-19, é essencial que tenhamos dados sobre todos esses ataques, físicos ou psicológicos, porque sem os dados não podemos criar adequadamente uma estratégia para evitá-los. Esses ataques são errados e repreensíveis, mas também em um momento, quando temos um déficit de seis milhões de enfermeiros e precisamos atrair mais para a profissão, essa é uma mensagem que mal podemos ouvir. ” (Catton)
Em alguns casos, durante a pandemia de Covid-19, medo, pânico, desinformação sobre como o Sars-CoV-2 podem se espalhar provocando uma raiva dirigida. Alguns líderes de governo responderam anunciando rapidamente e, em alguns casos, punições draconianas para aqueles que atacam os profissionais de saúde. No entanto, ameaças de represália não abordam as causas de tal violência e, por si só, é improvável reduzir esses ataques. Respostas eficazes devem abordar as causas principais.
O artigo da Lancet faz recomendações sobre o que os governos precisam fazer para reduzir esses ataques a enfermeiros e garantir que os autores de violência contra qualquer profissional de saúde sejam tratados adequadamente pelas autoridades apropriadas. Exige:
- A coleta de dados sobre a incidência e os tipos de ataques ao pessoal de saúde, inclusive no contexto da pandemia do covid-19.
Tais ataques contra profissionais de saúde devem ser evitados e, quando ocorrem, condenados. - Desinformação e falta de informação sobre a covid-19 devem ser combatidas. Teorias da conspiração contribuem para a demonização de certos grupos, como os profissionais de saúde.
A aplicação de ações fortes contra autores de ataques por governos locais e nacionais. - Investimento dos governos estaduais e locais em medidas de segurança da saúde para proteger os profissionais de saúde como parte dos orçamentos de emergência da Covid-19.
- Unidade entre os profissionais de saúde e suas associações em se manifestar com força contra todos os atos de discriminação, intimidação e violência contra profissionais de saúde.
Brasil é onde mais morrem enfermeiros por Covid-19. - O Conselho Federal de Enfermagem (Cofen) e o Conselho Internacional de Enfermeiros (ICN, sigla em inglês) afirmam que o Brasil é o país com mais mortes de enfermeiros e profissionais de saúde devido à pandemia.
De acordo com o Cofen, são 157 mortes de profissionais de enfermagem, sendo que, nesta quarta-feira (27), já foram confirmadas mais vítimas que ainda serão contabilizadas até o final do dia. O ICN informa que o país tem um número de mortes entre enfermeiros maior que o dos Estados Unidos, com 146 óbitos, e que o do Reino Unido, com 77.
O conselho brasileiro também diz que a tendência, com base nos dados nacionais, ainda é de crescimento no número de mortes na área.