Por Roberto Parahyba
Vivemos um momento inédito de crise sanitária e humanitária provocada pela pandemia mundial da Covid-19, que impôs o isolamento social – que não se aplica ao enorme contingente de cidadãos brasileiros que não têm casa ou acesso ao sistema de saneamento básico, com agua encanada para lavar as mãos – com a inusitada paralisação das atividades econômicas e produtivas como medidas de preservação da vida e da saúde das pessoas.
Não existe o falso dilema entre economia e preservação da vida e saúde, engendrado por pessoas destituídas de sensibilidade social, inteiramente voltadas aos seus interesses mesquinhos, olvidando que, sem vida, não há economia (como tudo o mais). A vida é o que importa, por isso reivindico nos caminhos aqui percorridos outro senso ético.
Também é por demais propedêutico reverberar que a preservação da renda e salário dos trabalhadores viabiliza o consumo dos bens e dos serviços, fundamental para a sobrevivência das empresas. Melhor distribuição de renda, proporcionada pelo Direito do Trabalho, representa maior consumo, propulsionador da economia.
O Direito do Trabalho sustenta a própria lógica da exploração capitalista. Por mais paradoxal que possa parecer, sua preservação atende menos aos interesses dos empregados: de preservação do padrão mínimo ético abaixo do qual não há que se falar em dignidade humana, do que dos empresários.
Os efeitos deletérios da retração da economia se prolongarão no horizonte temporal, em anunciado caos, por período e profundidade ainda indefinidos. A temporalidade e a gravidade de tais efeitos dependerão muito das posturas prospectivas. Augura-se que esse evento traumático também provoque efeitos pedagógicos, o de correção de rota político-social-jurídica, uma necessária inversão de valores, em direção aos direitos coletivos dos subalternizados, ou seja, da maioria expressiva da população brasileira, do interesse público, enfim, que se estabeleça uma estratégia de luta coletiva para o enfrentamento da principal chaga que tisna e envergonha a sociedade brasileira: a desmedida desigualdade social.
Consequência do completo descaso com a desigualdade social (flagrante injustiça) é a degradação dos serviços públicos essenciais prestados para a população carente de recursos financeiros, como os próprios serviços de saúde, da educação, moradia, saneamento básico, transporte, Justiça do Trabalho…. Como é consensual, falta no Brasil a igualdade de oportunidades, o que impossibilita evocar, de boa-fé, a “meritocracia”.
O desprezo aos menos favorecidos (“empreendedores” em aplicativos, terceirizados, intermitentes, “autônomos exclusivos”, “informais” – eufemismo, deveriam ser qualificados de ilegais, pela violação da legislação trabalhista), lançados à própria sorte, ou melhor ao azar, se estende aos sindicatos, os quais têm como objetivo “a defesa dos direitos e interesses coletivos ou individuais da categoria inclusive em questões judiciais ou administrativas” (art. 8º, III, da Constituição Federal).
Essa crise sanitária e sua consequente tragédia social desnuda(rá) quão imperiosa é a mudança radical de rota para o alcance de uma bem sucedida convivência social. Estamos caminhando em sentido contrário, rumo à barbárie, com a formação de um exército cada vez maior de trabalhadores precarizados, com remunerações baixas e ainda em sentido decrescente (“contrato verde e amarelo”), sem condições de manterem uma vida minimamente digna, com a degradação do meio ambiente, como um todo, não “apenas” o do trabalho.
É deveras cruel o modelo político moderno e colonialista prevalecente, de caráter escravagista, escorado pelo ultrapassado, mas predominante pensamento jurídico liberal-individualista, o chamado senso comum teórico dos juristas.
Nessa perspectiva segregacionista e desumana, promoveu-se a retirada ou encolhimento do manto protetor dos parcos direitos sociais trabalhistas, por meio da alentada Lei 13.467/2017, concebida e promulgada sem qualquer diálogo social, sob o desonesto mantra “modernista” do sacrifício dos direitos trabalhistas em prol do emprego, revelado falacioso pelos altos índices de desemprego, e que nos desviou completamente do caminho da paz social. A OIT – Organização Internacional do Trabalho, desde a sua criação, em 1919 (Tratado de Versalhes), proclama que a paz universal não pode ser fundada senão sobre a base da justiça social e que o trabalho humano não pode ser considerado como uma mercadoria.
A alcunhada “reforma trabalhista” também promoveu o enfraquecimento das entidades sindicais, não apenas pela retirada abrupta da sua principal fonte de sustento, como também pela migração para a negociação individual entre empregado e empregador de temas inerentes e próprios à negociação coletiva.
O caminho que estamos trilhando é conhecido. Já vimos esse filme e sabemos que seu roteiro é de uma tragédia humana. O filme ora reprisado é da época imediatamente anterior a do surgimento do Direito do Trabalho, da chamada Revolução Industrial, em que prevalecia a livre contratação e o dogma da autonomia individual da vontade. Transpostos para o âmbito da relação jurídica de emprego, intrinsicamente assimétrica e desigual (pressupõe a subordinação jurídica de uma parte em relação a outra), desaguou no trabalho degradante, em condições aviltantes, no cumprimento de jornadas exaustivas e estafantes, em regime análogo ao do escravo. Para debelar essa caótica “questão social”, surgiu o Direito do Trabalho, marcando a passagem do modelo do direito do Estado de Direito Liberal para o modelo do Direito do Estado de Direito Social.
Repisando o roteiro do individualismo pretérito ao do surgimento do Direito do Trabalho, a Medida Provisória 936 de 2020 discrimina hipóteses em que se permite o ajuste individual para a redução proporcional do salário e da jornada, notadamente em relação aos empregados que percebem salários inferiores a três salários mínimos, hipossuficientes, bem como aos ditos “hiperssuficientes”: “empregado portador de diploma de nível superior e que perceba salário mensal igual ou superior a duas vezes o limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social” (art. 444, parágrafo único da CLT).
Como referida MP mantém inalterado o salário-hora, vários juristas manifestaram-se no sentido da inexistência de redução salarial, como se a diminuição do valor mensal do salário auferido pelo empregado não configurasse uma alteração lesiva e prejudicial, portanto ilícita, do contrato de trabalho. Além da redução salarial direta, leia-se: do salário nominal, o princípio constitucional da irredutibilidade salarial, “salvo o disposto em convenção ou acordo coletivo”, conforme dicção literal do art. 7º, VI, da Constituição Federal, alberga também a impossibilidade de redução salarial indireta por meio de ajuste individual, conforme intepretação que melhor se harmoniza à regra hermenêutica que sempre busca encontrar no Direito a noção de sistema, isto é, conjunto de partes coordenadas entre si.
Mais do que uma interpretação sistêmica e gramatical, atinente à literalidade de dispositivo constitucional, a questão é de índole axiológica, requer do intérprete o abandono de preconceitos ilegítimos (Gadamer), o rompimento das arramas do tradicional pensamento jurídico liberal-individualista, despojamento imprescindível para se adentrar no aberto campo dialogal e da concertação social livre da mentalidade escravista que se vale de grilhões invisíveis, mas que aprisionam mais do que os de aço.
A libertação social perpassa pelo resgate da dignidade dos subalternizados, caminho repleto de gigantescos obstáculos (poderio econômico-financeiro e político), cuja transposição requer uma luta diuturna e coletiva. Por mais penosa e contundente, é também, e sobretudo, um ato de ternura, amor e responsabilidade com a vida.
Roberto Parahyba é membro da Comissão Nacional de Direitos Sociais da OAB Federal. Membro efetivo da Comissão Especial de Direito do Trabalho da OAB/SP. Ex-Presidente da ABRAT – Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas. Ex-Presidente da AATSP.