Por Marcos Aurélio Ruy
Nasceu Clementino Rodrigues, no dia 14 de novembro de 1921, em Salvador, onde permaneceu até a sua morte na manhã desta segunda-feira (30), aos 98 anos, de causas naturais. Na arte se tornou Riachão e nos deixou mais de 500 canções par enriquecer o acervo deste gênero musical, genuinamente brasileiro, que nasceu na Bahia.
Ganhou o apelido de Riachão ainda criança por, segundo ele próprio, ser muito briguento e os adultos assim o chamaram porque ele seria um riachão impossível de atravessar.
“Foi uma das pessoas mais alegres e cheia de vitalidade que conheci em toda a minha vida. O mais axé”, ressalta Timor. Para quem Riachão é “o maior nome do samba baiano”. E tem garantido o seu nome na história da música popular brasileira.
Show de Riachão e os Bambas de Sampa, no Sesc SP, em 2016
“Uma perda irreparável”, diz Paulinho Timor, o último produtor de Riachão, porque “ele era o mais velho representante da cultura nacional em atividade”. Riachão nunca se prendeu a modismos e sempre cantou as reminiscências de um Brasil submetido à mentalidade escravista, que marginaliza todos os traços culturais de matriz africana da vida do país.
Um dos seus sambas mais conhecidos “Cada Macaco no Seu Galho” serve como recado direto às pessoas avessas à cultura popular e de costas para o país, como faz o presidente Jair Bolsonaro, que dá pouco valor à vida e aos interesses nacionais e populares.
Cada macaco no seu galho, porque quem é da saúde decide os caminhos para preservar vidas e quem é presidente governa ou ao menos deveria governar voltado aos interesses da nação e do povo. Não é mesmo Bolsonaro?
“Assim era Riachão. Cantava com irreverência o cotidiano das pessoas comuns e a vontade de superar as barreiras da desigualdade”, afirma a baiana Vânia Marques Pinto, secretária de Políticas Sociais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil.
“Xô, xuá
Cada macaco no seu galho
Xô, xuá
Eu não me canso de falar”
Lançada em 1972 por Gilberto Gil e Caetano Veloso, nos piores anos de chumbo da ditadura fascista (1964-1985), que enterraria o Brasil em uma de suas maiores crises anos depois. Assim como faz o projeto neoliberal, de Bolsonaro e Paulo Guedes, ministro da Economia, ao entregar as riquezas naturais e o patrimônio nacional para grupos econômicos estrangeiros.
“Não se aborreça, moço da cabeça grande
Você vem não sei de onde
Fica aqui, não vai pra lá
Esse negócio da Mãe Preta ser leiteira
Já encheu sua mamadeira
Vá mamar em outro lugar”
Cada Macaco no Seu Galho, de Riachão; cantam Caetano Veloso e Gilberto Gil
Os baianos reconhecem o talento de Riachão ao mudar o nome do circuito “Mudança do Garcia” do carnaval de Salvador para Circuito Riachão, em 2015. Justamente o bairro onde ele nasceu e passou toda a vida.
Participação de Riachão no programa Senhor Brasil, da TV Cultura, em 2013
Cássia Eller (1962-2001) gravou “Vá Morar com o Diabo” e apresentou o sambista baiano a um público mais jovem com seus ouvidos mais acostumados ao rock.
“Ela quer me ver bem mal
Vá morar com o diabo
Que é imortal
Ela quer me ver bem mal
Vá morar com o sete pele
Que é imortal”
O sambista também fez uma investida pelo cinema através de “Os Pastores da Noite”, do francês Marcel Camus, baseado na obra homônima do escritor baiano Jorge Amado, em 1979.
Além de produtor musical, o percussionista e compositor, Timor conta que Riachão estava em plena atividade com um projeto sob o patrocínio da Natura, para gravar músicas inéditas. Infelizmente, não teve tempo.
Participação de Riachão no programa Sem Censura, da TV Brasil, em 2017
“Felizmente a Natura manteve o projeto e logo que passar essa crise do coronavírus pretendo viajar à Bahia para dar prosseguimento, agora alternando canções inéditas com grandes sucessos dele na voz de outros artistas”, afirma Timor. Riachão não gravava desde 2013, quando lançou o álbum “Mundão de Ouro”.
O último produtor musical de Riachão conta que ele passou por todas as fases da música popular brasileira. “Do rádio para a TV preto e branco e depois colorida à internet, ele se manteve lúcido, com seu trabalho singular”.
Vá Morar com o Diabo, de Riachão; canta Cássia Eller
Ele revela que em um almoço entre Dona Ivone Lara (1922-2018), Wilson Moreira (1936-2018) e Riachão, “a soma das idades deles dava 365 anos na época e brincamos que um ano tem 365 dias e nós tínhamos ali 365 anos em apenas um dia”.
A última temporada de shows de Riachão e o grupo Bambas de Sampa, do qual Timor faz parte, ocorreu em 2019 e passou por São Paulo, Rio de Janeiro e Curitiba e teve a participação de Martinho da Vila.
Camisa Molhada, de Riachão
Para Timor, Riachão é a prova inconteste de que a burguesia despreza a cultura e a sabedoria popular. “Grandes talentos velhos e novos da música popular brasileira resistem a duras penas porque não encontram espaço para sua arte nesta mídia voltada para o sucesso fácil e rápido”, conclui.