Por Paulo Nogueira Batista Jr*
Quero deixar aqui consignada a minha exortação enfática e solene: 2020 é ano de descascar o bambu em tudo que é gado, marreco, pato e tucano! E vamos parar, por favor, de pregar que “ao ódio se responde com amor”. O bateu/levou, como se sabe, é a mais importante ferramenta pedagógica da história da humanidade.
Infelizmente, consciência pesada não é muito mais do que de medo do revide. O rancor mais renitente e abjeto, por exemplo, é muito mais encontradiço do que qualquer autêntico sentimento de culpa. Seria muito melhor, claro, que o ser humano fosse capaz de alguns escrúpulos, alguns remorsos, alguns arrependimentos. Há exceções, de certo – os santos, os heróis, os sábios. Mas são poucas, muito poucas. Quando aparecem provocam espanto ou descrença.
Por que estou dizendo tudo isso? É que, desde 2015, a esquerda, a centro-esquerda e os democratas vêm apanhando feio aqui no nosso querido país. Muitos resistem corajosamente, não há dúvida. Mas prevalece, lamento dizer, uma certa resignação, misturada com autocomiseração e um orgulho descabido de “estar do lado certo da história”. Como se a história reconhecesse virtudes ou méritos morais! O suposto mérito dos que foram derrotados sem luta não será lembrado por ninguém. Em uma frase: resistir não basta – é preciso reagir.
Bem sei que há outro caminho, mais doce, mais louvável, mais nobre. O caminho de Cristo, Tolstói e Gandhi. Não responder à violência com violência. Oferecer a outra face. Mas, convenhamos, qual foi afinal a falha mais grave, mais fundamental do cristianismo? No meu modesto entender, foi pedir demais ao ser humano, esperar demais desse material precário, defeituoso. Pedir amor ao próximo! Parece pouco mais é muito, demais mesmo. A formulação original e um pouco mais completa já tende, é verdade, a certo realismo quanto à natureza humana: “Ame ao próximo como a si mesmo”. Um absurdo mesmo assim. Pascal, cristão agônico, reconhecia que “le moi est haïssable” (o eu é odioso). E Sartre, mais próximo de nós, disse: “l’enfer c’est les autres” (o inferno são os outros). Portanto, a julgar por grandes pensadores como os citados, não há motivo para cultivar amor próprio ou pelos outros.
Não desanimem, leitores. Há prazer na luta, também. Nem que seja por causa de um toque de sadismo que temos todos, em maior ou menor grau. Mas isso nem é o mais importante. O mais importante, a meu ver, está na advertência de Nietzsche: “In friedlichen Zeiten, fällt der kriegerische Mensch über sich her” (Em tempos de paz, o homem guerreiro ataca a si mesmo). Portanto, revidar, lutar, guerrear é o caminho da saúde.
Desde o ano passado, já se podia notar uma mudança de ventos. É verdade que menos no Brasil do que em outros países da América do Sul, Chile notadamente. Mas mesmo aqui. Participei, em novembro, de um pequeno embate que me pareceu um presságio alvissareiro. Um grupo de arruaceiros invadiu a embaixada da Venezuela em Brasília, invocando o nome do fantoche Juan Guaidó, aquele autoproclamado “presidente” da Venezuela. Instalaram-se na embaixada à força, contando com aparente beneplácito das autoridades brasileiras. Um dos filhos do presidente Bolsonaro chegou a comemorar a invasão.
Veio então a reação. Atendendo a pedido de ajuda do encarregado de negócios da embaixada venezuelana, grupos de esquerda e de movimentos sociais se reuniram em frente à embaixada para protestar. Eu estava por acaso em Brasília e fui para lá. Com o passar do tempo, aumentava o número de manifestantes, gritando slogans e exigindo a expulsão dos invasores. A polícia cercava a embaixada, impedindo a entrada dos manifestantes. Lá dentro, os arruaceiros ficaram aquartelados.
Eis que surgem alguns bolsominions, jovens de classe média, sujeitos fortes e agressivos. Começaram a gritar e xingar os manifestantes de esquerda. Foi o que bastou: baixou o espírito de Bacurau e o pau cantou. Com chutes e bordoadas, o pessoal botou os valentões para correr. Uma beleza.
O governo percebeu que não valia a pena comprar aquela briga. Acontece que há poucos quilômetros dali, começava naquele dia a cúpula dos líderes dos Brics. No final da tarde, os arruaceiros deixaram a embaixada pela porta dos fundos sob escolta policial. Deveriam ter sido presos, mas, enfim, foi uma vitória.
Neste ano da graça de 2020, que o espírito de Bacurau esteja convosco.
*Economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento do BRICS e diretor executivo no FMI pelo Brasil