Por Marcos Aurélio Ruy
Na primeira edição do ano, foram selecionadas quatro canções sobre o trabalho no campo. Todas valorizam as trabalhadoras e os trabalhadores e versam sobre a exploração capitalista que deteriora as relações de trabalho e a natureza.
A música que abre esta seleção, é Refazenda (1975), de Gilberto Gil, que utiliza metáforas para revelar como a vida no campo se relaciona intrinsecamente com a natureza e se esse relacionamento for saudável, pode nos trazer frutos bons. Mas para isso, é preciso saber cultivar bem a plantação.
Esta canção compõe uma trilogia com Refavela (1977) e Realce (1979). Juntas falam do trabalho no campo e na cidade e de como mesmo nas dificuldades, as trabalhadoras e os trabalhadores superam suas mazelas e encontram saídas contra o capital detonador de sonhos e do futuro.
“Não se incomode
O que a gente pode, pode
O que a gente não pode, explodirá
A força é bruta
E a fonte da força é neutra
E de repente a gente poderá” (Realce)
Em Refazenda, Gil mostra o trabalho como parte da vida e a semeadura no campo para fazer brotar a liberdade e os direitos iguais.
Refazenda (1975), de Gilberto Gil
Abacateiro
Acataremos teu ato
Nós também somos do mato
Como o pato e o leão
Aguardaremos
Brincaremos no regato
Até que nos tragam frutos
Teu amor, teu coração
Abacateiro
Teu recolhimento é justamente
O significado
Da palavra temporão
Enquanto o tempo
Não trouxer teu abacate
Amanhecerá tomate
E anoitecerá mamão
Abacateiro
Sabes ao que estou me referindo
Porque todo tamarindo tem
O seu agosto azedo
Cedo, antes que o janeiro
Doce manga venha ser também
Abacateiro
Serás meu parceiro solitário
Nesse itinerário
Da leveza pelo ar
Abacateiro
Saiba que na refazenda
Tu me ensina a fazer renda
Que eu te ensino a namorar
Refazendo tudo
Refazenda
Refazenda toda
Guariroba
Como um verdadeiro hino da reforma agrária, a canção O Cio da Terra, de Chico Buarque e Milton Nascimento, mostra a evolução da luta no campo pela posse da terra e da necessidade de políticas públicas que favoreçam a produção no campo.
Tudo ao contrário do que o governo de Jair Bolsonaro está fazendo, cortando investimentos na agricultura familiar e favorecendo os latifundiários ao tentar incriminar os movimentos que defendem a necessária reforma agrária.
Outra canção de Chico Buarque muito lembrada é Funeral de Um Lavrador (1965), poesia de João Cabral de Melo Neto, da peça Morte e Vida Severina. Uma canção em tom fúnebre porque o que resta à trabalhadora e ao trabalhador do campo “é a conta menor que tiraste em vida/É a parte que te cabe deste latifúndio/É a terra que querias ver dividida/É uma cova grande pra teu defunto parco/Porém mais que no mundo te sentirás largo/É de bom tamanho nem largo nem fundo/É a parte que te cabe deste latifúndio”.
Já em O Cio da Terra, fica evidente a necessidade de uma reforma agrária que contemple o campesinato para ter terra, trabalho, pão, justiça e liberdade para quem propicia alimentos saudáveis para a mesa dos brasileiros.
O Cio da Terra (1977), de Milton Nascimento e Chico Buarque, interpretação: Coral Soremi
Debulhar o trigo
Recolher cada bago do trigo
Forjar no trigo o milagre do pão
E se fartar de pão
Decepar a cana
Recolher a garapa da cana
Roubar da cana a doçura do mel
Se lambuzar de mel
Afagar a terra
Conhecer os desejos da terra
Cio da terra, a propícia estação
E fecundar o chão
Chico César e Carlos Rennó destroçam os Reis do Agronegócio, nesta canção de 2015. “Vocês desterram povaréus ao léu que erram/E não empregam tanta gente como pregam/Vocês não matam nem a fome que há na terra/Nem alimentam tanto a gente como alegam/É o pequeno produtor que nos provê e os/Seus deputados não protegem, como dizem/Outra mentira de vocês, pinóquios véios/Vocês já viram como tá o seu nariz, hem?”.
Mais explícito que isso, impossível. Ainda mais agora com Bolsonaro na Presidência e as queimadas proliferando, os agrotóxicos todos liberados e a produção de alimentos ficando ao deus-dará. Porque os latifundiários visam a exportação e a mecanização da produção, sem preocupação com a qualidade dos produtos, com a preservação da natureza e menos ainda com quem trabalha. “Que eu me alegraria se afinal morresse/Este sistema que nos causa tanto trauma”, cantam os poetas.
Reis do Agronegócio (2015), de Chico César e Carlos Rennó
Ó donos do agrobiz, ó reis do agronegócio
Ó produtores de alimento com veneno
Vocês que aumentam todo ano sua posse
E que poluem cada palmo de terreno
E que possuem cada qual um latifúndio
E que destratam e destroem o ambiente
De cada mente de vocês olhei no fundo
E vi o quanto cada um, no fundo, mente
Vocês desterram povaréus ao léu que erram
E não empregam tanta gente como pregam
Vocês não matam nem a fome que há na terra
Nem alimentam tanto a gente como alegam
É o pequeno produtor que nos provê e os
Seus deputados não protegem, como dizem
Outra mentira de vocês, pinóquios véios
Vocês já viram como tá o seu nariz, hem?
Vocês me dizem que o Brasil não desenvolve
Sem o agrebiz feroz, desenvolvimentista
Mas até hoje na verdade nunca houve
Um desenvolvimento tão destrutivista
É o que diz aquele que vocês não ouvem
O cientista, essa voz, a da ciência
Tampouco a voz da consciência os comove
Vocês só ouvem algo por conveniência
Para vocês, que emitem montes de dióxido
Para vocês, que têm um gênio neurastênico
Pobre tem mais é que comer com agrotóxico
Povo tem mais é que comer se tem transgênico
É o que acha, é o que disse um certo dia
Miss motosserrainha do desmatamento
Já o que acho é que vocês é que deviam
Diariamente só comer seu “alimento”
Vocês se elegem e legislam, feito cínicos
Em causa própria ou de empresa coligada
O frigo, a múlti de transgene e agentes químicos
Que bancam cada deputado da bancada
Té comunista cai no lobby antiecológico
Do ruralista cujo clã é um grande clube
Inclui até quem é racista e homofóbico
Vocês abafam, mas tá tudo no Youtube
Vocês que enxotam o que luta por justiça
Vocês que oprimem quem produz e que preserva
Vocês que pilham, assediam e cobiçam
A terra indígena, o quilombo e a reserva
Vocês que podam e que fodem e que ferram
Quem represente pela frente uma barreira
Seja o posseiro, o seringueiro ou o sem-terra
O extrativista, o ambientalista ou a freira
Vocês que criam, matam cruelmente bois
Cujas carcaças formam um enorme lixo
Vocês que exterminam peixes, caracóis
Sapos e pássaros e abelhas do seu nicho
E que rebaixam planta, bicho e outros entes
E acham pobre, preto e índio “tudo” chucro
Por que dispensam tal desprezo a um vivente?
Por que só prezam e só pensam no seu lucro?
Eu vejo a liberdade dada aos que se põem
Além da lei, na lista do trabalho escravo
E a anistia concedida aos que destroem
O verde, a vida, sem morrer com um centavo
Com dor eu vejo cenas de horror tão fortes
Tal como eu vejo com amor a fonte linda
E além do monte o pôr do sol porque por sorte
Vocês não destruíram o horizonte… Ainda
Seu avião derrama a chuva de veneno
Na plantação e causa a náusea violenta
E a intoxicação “né” adultos e pequenos
Na mãe que contamina o filho que amamenta
Provoca aborto e suicídio o inseticida
Mas na mansão o fato não sensibiliza
Vocês já não tão nem aí co’aquelas vidas
Vejam como é que o ogrobiz desumaniza
Desmata minas, a amazônia, mato grosso
Infecta solo, rio, ar, lençol freático
Consome, mais do que qualquer outro negócio
Um quatrilhão de litros d’água, o que é dramático
Por tanto mal, do qual vocês não se redimem
Por tal excesso que só leva à escassez
Por essa seca, essa crise, esse crime
Não há maiores responsáveis que vocês
Eu vejo o campo de vocês ficar infértil
Num tempo um tanto longe ainda, mas não muito
E eu vejo a terra de vocês restar estéril
Num tempo cada vez mais perto, e lhes pergunto
O que será que os seus filhos acharão de
Vocês diante de um legado tão nefasto
Vocês que fazem das fazendas hoje um grande
Deserto verde só de soja, cana ou pasto?
Pelos milhares que ontem foram e amanhã serão
Mortos pelo grão negócio de vocês
Pelos milhares dessas vítimas de câncer
De fome e sede, e fogo e bala, e de avcs
Saibam vocês, que ganham “cum” negócio desse
Muitos milhões, enquanto perdem sua alma
Que eu me alegraria se afinal morresse
Este sistema que nos causa tanto trauma
Que eu me alegraria se afinal morresse
Este sistema que nos causa tanto trauma
Que eu me alegraria se afinal morresse
Este sistema que nos causa tanto trauma
Que eu me alegraria se afinal morresse
Este sistema que nos causa tanto trauma
Ó donos do agrobiz, ó reis do agronegócio
Ó produtores de alimento com veneno
O compositor pernambucano, Maciel Salú canta as imensas dificuldades que o Trabalhador Rural (2006) enfrenta para levar a vida. E tudo começa muito cedo e vai até o sol se pôr. “Quatro horas da manhã, pai acorda pra trabalhar/Minha mãe vem me chamar na cozinha faz o café/A enxada na parede em pé ele pega e vai amolar/E os bicho pra amarrar, deixa a cabra no mato amarrada/Vem ligeiro e pega o facão pra cortar a cana queimada”.
Nascido em Olinda, Salú é cantor, compositor, rabequeiro, mestre e brincante de diversos folguedos populares. Influenciado pelo movimento manguebeat, ele passou a integrar a banda Chão e Chinelo, nos anos 1990. Suas canções misturam ritmos regionais com música eletrônica junto ao DJ Dolores, Fábio Trummer, Jam da Silva e Isaar, formando a Orchestra Santa Massa.
Trabalhador Rural (2006), de Maciel Salú
Não sou filho de
senhor de engenho
Eu trabalho na palha da cana
Quatro
horas da manhã, pai acorda pra trabalhar
Minha mãe vem me
chamar na cozinha faz o café
A enxada na parede em pé ele pega
e vai amolar
E os bicho pra amarrar, deixa a cabra no mato
amarrada
Vem ligeiro e pega o facão pra cortar a cana
queimada
No engenho tem limpagem de mato
Escavação
de terra pra plantar
Cambiteiro a cana vai pegar
Tem
empeleiteiro, o cabo e feitor
Carro de boi, carreiro, operador
O
trabalho no campo é pesado
Na mão a foice faz calo
Ticuqueiro
dá duro, o suor pinga
Bota o feixe de cana no caminhão
Leva
pra moer na usina