Considerado um dos mais importantes artistas brasileiros da história, o cantor e compositor carioca Noel de Medeiros Rosa morreu cedo em decorrência de tuberculose, aos 26 anos. Mas apesar da vida curta, compôs quase 250 canções, a maioria num espaço de cinco anos.
A obra do artista é tida como um retrato-síntese das mudanças culturais, políticas e econômicas no Rio de Janeiro no início do século 20, abordando temas que envolvem as mais diversas classes sociais.
Em suas 71 canções gravadas, segundo o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), o chamado Poeta da Vila passa por marchinhas carnavalescas, teatro musicado, choro, samba-canção.
Veja abaixo a história em torno das três músicas mais executadas nas plataformas digitais YouTube e Spotify interpretadas pelo próprio Noel Rosa, nascido há 109 anos, em 11 de dezembro de 1910. A data foi homeageada nesta quarta-feira (11) no Doodle do Google ilustrado por Olivia Huynh.
Conversa de Botequim
Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa / Uma boa média que não seja requentada / Um pão bem quente com manteiga à beça
A música mais ouvida é Conversa de Botequim, executada mais de 546 mil vezes na Spotify e 1,3 milhão de vezes no Youtube. A canção registrada em 1935 foi feita com o compositor e arranjador paulista Vadico, considerado o maior parceiro de Noel.
Em Noel Rosa, uma Biografia (1990), os autores João Máximo e Carlos Didier descrevem a canção como uma “prodigiosa crônica dos cafés cariocas e seus folgados frequentadores”, cercados de garçons, cinzeiros, palitos, jogo do bicho, futebol e pagamento fiado.
Para o antropólogo Roberto DaMatta, em artigo no jornal O Globo, os “faça o favor” espalhados pela letra representam um marcador cultural que torna o pedido algo “educado”, mesmo que ele seja um imperativo abusivo e absurdo.
Mas segundo os biógrafos o principal ponto da música Conversa de Botequim, “escorregadia como um choro”, é a harmonia entre letra e melodia.
“Em nenhuma outra é tão harmonioso o casamento da melodia com a letra, pontuação perfeita, acentuação irrepreensível (nem todos têm muito cuidado para com esse detalhe técnico de uma letra, a acentuação da palavra tendo de coincidir com a acentuação musical, isto é, a sílaba mais forte correspondendo à nota sobre a qual recai o acento melódico)”, descrevem.
Segundo os biógrafos, não é possível determinar se Vadico foi o responsável pela melodia inteira e “Noel criou para ela os mais exatos versos de toda a canção brasileira”, ou se ambos trabalharam na construção da música, hipótese mais provável.
Outra parceira de Noel, Aracy de Almeida interpretaria uma das mais conhecidas versões de Conversa de Botequim.
Com que Roupa
Com que roupa que eu vou / Pro samba que você me convidou?
Noel ri da própria desgraça na canção Com que Roupa, gravado em 1930, na qual lamenta: “Mesmo eu sendo um cabra trapaceiro, não consigo nem ter pra gastar”.
Em sua versão original, a música, regravada dezenas de vezes por outros artistas, foi executada mais de 410 mil vezes no Spotify e 826 mil no YouTube.
Segundo a dupla de biógrafos de Noel Rosa, à época da composição da música coexistiam dois tipos de samba na cidade.
Um deles misturava “intelectuais e macumbeiros, funcionários públicos e boêmios, pequenos comerciantes bem-sucedidos e operários modestos, ex-escravos e músicos”, como Sinhô e Pixinguinha.
O outro, menos conhecido naquele momento, se espalhava pelos morros com menos e músicos treinados ou instrumentos, letras mais próximas do cotidiano da região, com acompanhamento mais improvisado, rudimentar, com tamborins, cuícas, surdos, pandeiros, cavaquinhos, palmas e batidas na mesa.
Noel parece se aproximar mais da segunda vertente nesta canção com bandolim e violões, que foi um sucesso estrondoso de público.
Ao longo dos anos, o sambista deu diversas versões sobre a origem da música, da qual dizia não gostar. Elas iam do retrato realista das dificuldades econômicas do povo à alegoria da situação política às voltas com a Revolução de 1930, golpe que levaria Getúlio Vargas ao poder.
Os biógrafos também exaltam aspectos mais técnicos da canção, marcada por um “feliz casamento de música e verso”. “Há também a originalidade do tema, as rimas pouco usuais na canção popular, a construtura técnica na qual o sexto verso do coro é uma espécie de chave. Sempre terminando em palavra que rima com ‘roupa’, o verso funciona como um breque e ‘chama’ musicalmente o estribilho. Uma tentação para os improvisadores (mais tarde, nas rodas de samba, a maestria do versejador será medida por esse sexto verso).”
No livro No Tempo de Noel (1963), Almirante, o primeiro biógrafo do sambista, aponta que o artista não esperava que a música fizesse tanto sucesso e até a vendeu por 180 cruzeiros para cantores do Teatro Municipal.
Feitiço da Vila
Lá, em Vila Isabel / Quem é bacharel/ Não tem medo de bamba
A origem social de Noel Rosa, crescido no bairro de classe média Vila Isabel, e a condição de estudante universitário (abandonaria o curso de medicina por causa da carreira artística) “justificam a originalidade e profundidade de suas formulações poéticas e o apelido que ganha de Filósofo do Samba”, segundo a Enciclopédia do Itaú Cultural.
Seu bairro de origem é cenário de uma de suas principais músicas, Feitiço da Vila, gravação de 1934 que se tornou um sucesso ao redor do país. Noel era cobrado a cantá-la por onde fosse.
“Enterneci-me vivamente quando pressenti que o meu samba Feitiço da Vila batera fundo no espírito daquela gente boa. Difundiram-no, popularizaram-no, e numa mostra de curiosidade bem feminina as moças perqueriram as razões que lhe inspiraram o título. Traduzi-o por Feitiço de Minha Pátria, pois, como já disse Cícero, ‘a pátria é onde se está bem’, e nunca me senti melhor do que no recanto calmo e bonançoso de Vila Isabel”, afirmou Noel.
Era também uma homenagem a Lêla Casatle, uma jovem da Vila Isabel que fora eleita Rainha da Primavera.
A canção fruto de parceria com Vadico, executada 417 mil vezes no YouTube e outras 73 mil vezes no Spotify, teve tanto sucesso que suscitou inclusive uma provocação do sambista rival Wilson Batista, batizada de Conversa Fiada.
“É conversa fiada / Dizerem que o samba / Na Vila tem feitiço / Eu fui ver para crer / E não vi nada disso.”
A disputa rendeu uma tréplica de Noel, chamada Palpite Infeliz. “Meu Deus do céu, que palpite infeliz! / (…) Você não viu porque não quis / Quem é você que não sabe o que diz?”
Décadas depois, Martinho da Vila, artista oriundo do mesmo bairro que regravou Feitiço da Vila, comporia Noel: A Presença do Poeta da Vila. “Seus sambas muito curti / Com a cabeça ao léu / Sua presença senti / No ar de Vila Isabel.”