Renato Barreiros acompanhou de perto a cena do funk em São Paulo e fez dois documentários sobre o tema – Funk Ostentação e No Fluxo. Como subprefeito de Cidade Tiradentes, no extremo leste da cidade (2008-2010), tentou concorrer com a cultura dos proibidões, de apologia ao crime. Criou o Festival de Funk de Cidade Tiradentes, os “permitidões”. Desde então, viu nascer e morrer a cultura do funk ostentação, com a ascensão e queda da nova classe média, e proliferação dos pancadões de rua.
Folha: Como surgiu seu envolvimento com o funk?
Renato Barreiros: Depois dos ataques do PCC, o PCC tinha virado um mito na periferia. Tinha uma música do MC Keké, que era: “Cinco dias de terror, o Brasil parou pra ver, quem manda, quem manda, quem manda é o PCC”. Aí a gente queria de alguma maneira fazer o funk, mas que não tivesse apologia ao crime. A gente criou o festival de funk de Cidade Tiradentes. Tiveram três edições, de lá saíram alguns MCs de funk que fizeram sucesso, meio que lá começou a surgir o funk ostentação. Era aquela época de governo Lula, nova classe média. E comecei a me envolver com o funk.
Folha: Mesmo com repressão policial, os bailes funks são onipresentes na periferia de São Paulo. A que atribui a força desse fenômeno?
Renato: Hoje a taxa de desempregados entre 18 e 24 anos é de mais ou menos 25%, é o dobro da média nacional. O jovem está sem grana. Onde ele vai se divertir? Na rua. A rua é o pancadão, é o fluxo. Na época do funk ostentação, os bailes de salão, as casas noturnas, atraíam muito mais esses jovens – e você ouvia muito falar do camarote. Hoje, você ouve falar do baile de favela. Está retratando a realidade atual do jovem. O jovem não tem dinheiro, vai para onde? Vai para a rua.
Folha: Então, a falta de dinheiro matou o funk ostentação?
Renato: Sim. O funk ostentação morreu na nossa crise econômica. Não só ostentar, mas é questão de perspectiva, 25% de desemprego entre os jovens, o cara não acha que vai ter muito dinheiro um dia. Sobra o quê? Dez, quinze reais para os meninos gastarem no final de semana. Vai na rua comprar um corote [bebida destilada popular entre jovens] e gasta lá.
Folha: Que tipo de funk substituiu?
Renato: Hoje em dia há uma questão sexual bem maior.
Folha: Incidentes envolvendo a polícia e pessoas feridas são comuns na cena do funk de SP. Como vê essa relação?
Renato: Em 2008, quando comecei como subprefeito a propor uma solução, e a gente chegou a fazer os bailes funks permitidão em Cidade Tiradentes, os policiais falavam para gente assim: “estou cansado de enxugar gelo. Vou lá, disperso, daqui uma hora está de volta”. Então, pelos policiais que eu conversava na época, já mostrava que não dava resultado. O que vai dar resultado aos pancadões é uma política cultural que você tenha concorrentes para o baile funk. Se você fizer uma grande ocupação cultural em Paraisópolis, com atividades gratuitas para os jovens, isso minimiza muito o baile.
Folha: Há uma questão dúbia envolvendo os bailes nas ruas. Por um lado, suprem lazer em áreas carentes; por outro, causam transtornos e têm ilegalidades como venda de drogas. Como lidar essa questão?
Renato: Não defendo os bailes funk do jeito como são hoje. Tem sérios problemas, menor de idade, ouvindo música que não é própria, super sexualizada, tem consumo de droga, consumo de bebida alcoólica num lugar onde tem menor de idade. Eu não defendo de maneira alguma o que existe hoje. O poder público ainda não tomou com seriedade devida a cultura e lazer para os jovens. Nessas áreas de alta vulnerabilidade, têm que ser oferecidas alternativas para os jovens. Se tiver festa legal, de graça e organizada pelo poder público, o jovem vai.
Folha: Como lidar com a questão do tráfico, que, em alguns casos, atua na organização de bailes?
Renato: Acho que não é foco do crime organizado. Se existe uma aglomeração de pessoas, lógico que vão tentar vender bebida e drogas. A polícia tem que estar lá para coibir esse tipo de atitude, mas não acho que seja o grande negócio lucrativo nem que todos os fluxos sejam organizados pelo crime organizado. Acho que existe uma mística por trás disso. O que existe muito mais é um monte de gente numa festa e alguém vai aparecer para vender droga. Acho que, com o poder público organizando as festas de uma maneira legal, você coíbe isso – e envolvendo a Polícia Militar e a GCM.
Folha: Qual é o papel da polícia em relação aos bailes?
Renato: Não dá para colocar a discussão como tem que atuar ou não. Se chegou na hora de ter o baile, já está errado. A coisa tem que ser antes. Por que a Secretaria de Cultura Municipal não organiza uma festa todo sábado à noite, cede palco, som, coisa e tal e chama a polícia para organizar? Foi o que a gente fez nesses bailes funks permitidão em Cidade Tiradentes. A polícia estava ali para organizar e, obviamente, coibia o que fosse crime. Agora, na hora que você tem 5 mil pessoas com não sei quantos carros parados, já é caos. Não pode ser uma questão de polícia, tem que ser uma questão de cultura.
Folha: Como funcionavam os permitidões?
Renato: A prefeitura tinha uma estrutura de palco, luz e som e a gente pegava os MCs de funk locais. Aí a gente convidava ele e os DJs, tinha cuidado com as músicas, porque tinha menor de idade, então não podia ser apologia a crime e a drogas, e rolava a tarde inteira. Evitava que na área cercada pudesse entrar ambulante com bebida alcoólica. Tinha polícia presente, bem como a GCM ali. Com isso a gente conseguiu zerar o número de pancadões em Cidade Tiradentes na época. Começava a partir das 17h, com artistas locais, e chegava 22h, 22h30, acabava. Havia algumas vezes que a polícia tinha que dispersar, mas era outro clima, porque a polícia já estava organizando desde lá de trás, já se proibia bebida alcoólica para menor de idade.
Folha: Mesmo com proibições, houve bom público?
Renato: Com certeza. A maioria dos jovens não vai nisso por causa da droga. Tem gente usando droga… A maioria dos jovens está na escola, quer encontrar a menininha da classe dele que gosta, os amigos. A resposta é essa: onde é esse local de sociabilidade? A resposta é essa.
Folha: Que tipo de iniciativa falta hoje?
Renato: Faltam políticas públicas levando em conta que a juventude vai sair para se divertir no sábado, no final de semana.