Por Marcos Aurélio Ruy
Dando continuidade às reportagens em comemoração aos 16 Dias de Ativismo pelo Fim da Violência Contra a Mulher, nesta edição é abordada a violência contra as mulheres do campo para entender a sensação de abandono pelo Estado vivenciado pelas trabalhadoras rurais, principalmente, nos últimos três anos.
“Durante os governos progressistas sentíamos que tínhamos a possibilidade de enfrentar com apoio do Estado a violência que nos acometia, mas agora a situação degringolou e o retrocesso tem sido imenso e intenso”, afirma Maria Aires Oliveira Nascimento, secretária-adjunta da Mulher Trabalhadora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB).
“Sem mecanismos de defesa, fica difícil até de denunciar a violência”, complementa Aires que também é secretária das Mulheres Trabalhadoras Rurais da Federação dos Trabalhadores/as na Agricultura do Estado de Sergipe.
O relatório Conflitos no Campo Brasil 2018, da Comissão Pastoral da Terra (CPT), da igreja católica, mostra uma diferença substancial entre a violência contra homens e mulheres do campo. “O que chamou muita atenção é o grau de crueldade. Não só os números de assassinatos e a violência, mas parece que quando agridem a mulher é muito mais cruel”, diz Jeane Bellini, da coordenação nacional da CPT.
Assista Sozinhas a História de Mulheres que Sofrem Violência no Campo
(Reportagem de Ângela Bastos, imagens: de Felipe Carneiro e edição de imagens: Chico Duarte)
De acordo com ela, as cerca de 15 milhões de mulheres (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE), que trabalham e vivem no campo, enfrentam restrições maiores do que os homens no acesso à água, à titulação das terras, ao crédito rural, à assistência técnica, à compra de sementes e até na comercialização de seus produtos.
O estudo da CPT mostra que em 2018, duas mulheres foram assassinadas em decorrência de conflitos agrários, 36 receberam ameaças de morte, seis sofreram tentativas de assassinato, duas foram torturadas e 400 foram detidas apenas por defenderem seus direitos, num total de 482 vítimas de violência que registraram denúncia.
Mas a violência vai além. “sofremos maiores discriminações no acesso à terra, no mercado de trabalho e pela dupla jornada de trabalho. A mulher sindicalista e ativista sofre ainda mais violência de diversas maneiras pela ousadia de lutar”, acrescenta Vânia Marques Pinto, secretária de Políticas Sociais da CTB.
Com a vigência das políticas públicas, as vítimas já enfrentavam inúmeras dificuldades para denunciarem o agressor. “Sem mecanismos de punição e atendimento para as agredidas, torna-se muito mais difícil convencer as vítimas a denunciarem e com a impunidade, a violência tende a crescer”, diz.
Para ela, “no campo faltam espaços para assistência às vítimas de violência, como as delegacias da mulher, pois mesmo com a Lei Maria da Penha, o atendimento nas delegacias comuns desencorajam as denúncias pelo constrangimento a que as violentadas passam ao serem atendidas por homens.”
Já Mazé Morais, secretária de Mulheres da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Agricultura e coordenadora da Marcha das Margaridas 2019, “particularmente, as mulheres do campo, da floresta e das águas, além de expostas à violência física, enfrentam uma série de violências simbólicas e materiais, como a invisibilidade e desconsideração de suas contribuições econômicas.”
Vídeo da Marcha das Margaridas 2019
Ela reforça também que as mulheres do campo “são sempre as mais afetadas pelo aumento da pobreza e extrema pobreza rural. Mesmo constituindo importante parte da força de trabalho das famílias e responsáveis por produzir parte significativa dos alimentos que a sociedade consome.”
O relatório Conflitos no Campo Brasil 2018 mostra ainda que de 2009 a 2018, 1.409 mulheres notificaram algum tipo de violência no meio rural, mas esse número, segundo a CPT, pode ser bem maior devido à subnotificação. Nesse período, 38 mulheres foram assassinadas, 409 receberam ameaças de morte, 22 morreram em consequência de conflitos, 111 foram presas e 37 foram estupradas.
A situação vem piorando nos últimos três anos, diz Vânia. “Depois que tiraram a Dilma, as políticas públicas em favor dos direitos da mulher começaram a ser extintas e as mulheres sentem-se largadas à própria sorte, já que inclusive a agricultura familiar sofre com o descaso dos governantes neoliberais.”
Aires concorda com ela e afirma que o presidente Jair Bolsonaro favorece os grandes produtores em detrimento da agricultura familiar e dos pequenos agricultores. “O governo liberas agrotóxicos indiscriminadamente, favorece a incursão de queimadas ao mesmo tempo em que corta verbas para a agricultura familiar, que é quem produz alimentos saudáveis para a mesa dos brasileiros”, acentua.
A mulher é o negro do mundo
Apesar de algumas dificuldades maiores enfrentadas pelas mulheres do campo, “a mulher é o negro do mundo”, como dizem John Lennon e Yoko Ono na canção homônima. A violência as atinge indiscriminadamente, principalmente porque quando se violenta o corpo e a alma feminina se atinge a todas as mulheres. Abaixo trecho da música:
“A mulher é o
negro do mundo
Sim, ela é,
Pense a respeito
A mulher
é o negro do mundo
Pense a respeito…
Faça algo contra
isso”
“O crescimento da violência contra as mulheres denuncia que vivemos numa sociedade doente. Os homens têm medo da mulher livre e atuante em defesa de sua vida e seus direitos”, diz Celina Arêas, secretária da Mulher Trabalhadora da CTB.
Uma pesquisa feita pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), comprova a afirmação de Celina. O levantamento aponta que 536 mulheres foram agredidas fisicamente a cada hora com socos, empurrões ou chutes, em 2018. E não foi no Oriente Médio, na África (locais mais violentos contra as mulheres) e sim no Brasil, onde 177 mulheres foram espancadas a cada hora no ano passado. Sendo que 52% das vítimas não denunciou o algoz.
Ouça Woman Is the Nigger of the World, de John Lennon e Yoko Ono
“Atualmente ocorrem retrocessos inclusive no ato de fazer a denúncia”, assinala Celina, porque “o Estado machista não encoraja as vítimas a procurarem seus direitos e a mídia comercial naturaliza a violência como se fosse normal homem bater em mulher.”
Números da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) denunciam o crescimento de feminicídios. Somente em fevereiro deste ano 126 mulheres no Brasil e outras tentativas de assassinato. Segundo o FBSP, 16 milhões de mulheres foram agredidas no Brasil em 2018, ou 1.830 por hora. Pasmem. Ainda, de acordo com a ONG, o número de feminicídios cresceu 12% em relação a 2017.
“É preciso atuar sobre as causas e os fatores da violência contra a mulher, impedindo que isso aconteça. É urgente garantir ações e investimentos em prevenção da violência de gênero e para a desconstrução do machismo”, complementa Ana Carolina Querino, representante interina da Organização das Nações Unidas Mulheres Brasil.
Além disso, “precisamos de políticas públicas que colaborem para a autonomia econômica com acesso à terra, ao crédito e à assistência técnica”, argumenta Vânia. E ainda ampliar “o acesso à educação e criar mecanismos de defesa e empoderamento às vítimas de abuso.”
Ela lembra do assassinato da vereadora Marielle Franco, assassinada em 14 de março de 2018 e até hoje os responsáveis por esse feminicídio político não estão presos e sendo julgados como determina a lei.
Em todo o mundo as mulheres sofrem discriminação. O assédio moral e o assédio sexual são práticas recorrentes, a dupla jornada de trabalho, a inferioridade salarial para mesmas funções, mesmo quando possuem escolaridade superior. Recentemente até os estúdios de cinema de Hollywood tiveram denúncias de pagar salários menores para as mulheres e da existência de assédios.
De acordo com Mazé, “em geral, as atividades das trabalhadoras do campo não são suficientemente reconhecidas, sendo classificadas como ‘ajuda’ ou ‘complemento’ ao trabalho do homem, o que limita seu acesso a rendimentos e ao poder de decisão sobre os rumos da produção e da comercialização, ainda sob domínio masculino.”
Como escreveu o dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), na peça Casa de Bonecas, “uma mulher não pode ser ela própria nesta sociedade que se construiu como uma sociedade masculina com leis traçadas pelos homens e por juízes masculinos que julgam a sociedade a partir de critérios masculinos.” Já passa da hora de mudar todos esses critérios.