Nova arma contra trabalhadores, acordo extrajudicial visa afastar o acesso à justiça
A Constituição de 1988 foi parida na luta pela abertura democrática. Manteve a mesma base estrutural de organização fundada na concentração de renda, própria do capitalismo, mas propôs uma significativa inversão de valores. Ao afirmar como objetivos da ordem jurídica construir uma sociedade justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, promovendo o bem de todos, a sociedade brasileira, naquele momento trágico em que ainda precisávamos assimilar o número de mortos e desaparecidos e as razões pelas quais a violência foi por tanto tempo o discurso oficial, assumiu um compromisso: capitalismo sim, mas sem selvageria.
Pois mesmo esse compromisso enfrenta resistência. E o resultado é que após 30 anos de vigência, nossa Constituição, em larga medida, ainda não foi efetivada.
A necessidade de fazer valer os direitos sociais ainda é contaminada pelos quase quatrocentos anos de escravidão institucionalizada, por um cultura misógina e pelos períodos de regime autoritário. A falta de um verdadeiro acerto de contas com essas chagas históricas é revelada pela completa ausência de política pública de inclusão social a partir de 1888 ou pela realidade de que a escravidão institucionalizada terminou bem mais por haver se tornado um mau negócio, do que pela desumanidade que implicava.
Tanto assim, que os castigos corporais seguiram sendo admitidos nos ambientes de trabalho e que o Código Penal de 1890 continha a previsão do crime de vadiagem para quem não obtivesse uma renda. O Brasil recebeu mais de 500 mil imigrantes na última década do século XIX, cuja força de trabalho era preferida, em relação ao trabalho das negras e negros, sob o discurso de uma suposta necessidade de promover o embranquecimento da população.
A misoginia, por sua vez, é revelada pela forma como as mulheres negras seguiram sendo tratadas após a abolição da escravidão institucional, pela invisibilidade do trabalho em âmbito doméstico ou pela existência, até hoje, de nichos predominantemente femininos, como os ambientes de estética, nos quais o direito do trabalho não consegue penetrar.
Após a abertura democrática, políticos comprometidos com o regime civil-militar seguiram ocupando postos de poder, o que significa que também a nossa noção de Estado está comprometida por um sentimento de que as regras do jogo podem seguir sendo ditadas (e distorcidas) pelas mesmas famílias e de que atos de terrorismo institucional podem ser tolerados ou esquecidos com facilidade.
Governos de diferentes matizes se sucederam mantendo a lógica de entreguismo, uma espécie de síndrome de colônia, de que a venda de grande parte da Petrobrás ou a autorização para a construção da hidrelétrica em Belo Monte são exemplos. É exemplo também o desmanche que vem sendo promovido em relação às normas de proteção a quem trabalha, nas áreas trabalhista e previdenciária. Não é preciso aprofundado conhecimento de economia para saber que a retirada de direitos sociais em uma sociedade capitalista compromete as possibilidades de produção, circulação e consumo. Compromete, portanto, a nossa soberania.
Não levar a sério a ordem constitucional fez com que chegássemos a 2016 e permitíssemos que a primeira mulher eleita presidenta em nosso país fosse alvo de ostensiva violência de gênero, exercida em episódios como as manifestações contra o aumento da gasolina ou a sessão em que declarado seu impedimento. O voto de um deputado federal, evocando a tortura por ela sofrida durante o período de ditadura constituiu um momento emblemático de ruptura.
Se hoje temos um governo que se destaca pela realidade distópica em que vive, negando a pobreza ou a destruição do ambiente, pelas agressões sistemáticas que promove com suas falas e atos contra mulheres, trabalhadores, ambientalistas e cuja política é fazer “terra arrasada” em relação às poucas conquistas sociais obtidas, é preciso compreender como chegamos até aqui. Por isso, importa relembrar a sessão de impeachment e o voto dedicado ao Almirante Ustra, “o pavor de Dilma Rousseff”. Naquele momento se fez visível, com uma nitidez impressionante, aquilo que nos aguardava, mas também os erros que cometemos e que tornaram possível uma tal atitude, em plena realidade democrática.
A série de atos que a partir de então, sob o pretexto de combater a corrupção e promover desenvolvimento econômico, corrompeu as regras do jogo e viabilizou a vitória eleitoral de um capitalismo selvagem e sem peias, escorado em uma falsa moralidade pautada por uma tentativa de frear movimentos sociais e identitários não seria possível apenas com a mobilização de afetos conservadores ou com a ação de alguns agentes públicos corruptos.
A cumplicidade com o racismo estrutural e com a violência de gênero; a ausência de verdadeiro acerto de contas com as atrocidades cometidas no período da ditadura civil-militar; a lógica privatista, em que o bem público é gerido como se tivesse a finalidade exclusiva de atender aos interesses da elite; o desrespeito à noção de bem comum e à necessidade de preservação das riquezas naturais e das conquistas sociais que viabilizam o convívio saudável, enfim, apenas a soma de todos esses fatos tornou possível o desmonte.
Já na década de 1990 fragilizou-se a proteção à jornada. A estabilidade decenal até hoje prevista na CLT foi considerada letra morta por uma jurisprudência destrutiva. Ignorou-se a regra de proteção contra a despedida. Os movimentos sociais foram criminalizados. A greve foi tratada como caso de polícia. As garantias do funcionalismo público foram paulatinamente atacadas, através do achatamento das remunerações, das sucessivas alterações no sistema de previdência e da disseminação da prática de terceirização. A lógica de promover conciliações que implicam renúncia e a invenção, pela própria Justiça do Trabalho, da cláusula abusiva e ilegal de quitação geral do contrato, promoveram efetiva vedação do acesso à justiça antes mesmo da “reforma”.
Sem uma resistência radical contra a prática da terceirização (pouco importa se de atividade-meio ou fim); contra a tal quitação de contrato; contra a criminalização e a proibição da greve; contra a chancela de negociações ilegais alterando condições de trabalho, as garantias sociais foram sendo aniquiladas em uma “desidratação” da Constituição que sequer precisou do auxílio do parlamento.
Sob a ótica do direito social do trabalho não é difícil perceber como essa resiliência ajudou a tornar possível o golpe de 2016 e a EC 95, a “reforma” (trabalhista) de 2017, a eleição de um projeto contrário ao Estado Social em 2018 ou o desmanche do sistema de seguridade em 2019, ou porque segue sendo possível (e cada vez mais real) a extinção da Justiça do Trabalho.
Houvesse um verdadeiro compromisso com a ordem constitucional de 1988 e as alterações promovidas na CLT, pela Lei 13.467, seriam neutralizadas por uma jurisprudência capaz de honrar a razão histórica pela qual o direito do trabalho, e a Justiça do Trabalho, existem no Brasil. E, com isso, evitar de contribuir para os argumentos em favor de sua extinção.
De acordo com o TST, 33,2 mil processos de acordo extrajudicial foram propostos na Justiça do Trabalho, apenas em 2018. Trata-se de uma demanda em que as partes, representadas por advogados diferentes, informam ao Estado que já fizeram um acordo. Não há litígio e, portanto, não há razão para processo. O objetivo é a homologação judicial do que foi acordado.
Uma prática que, na realidade, serve exclusivamente para a obtenção da quitação geral do contrato, que nada mais é do que o impedimento de acesso à justiça. Legado da “reforma” feita pela Lei 13.467, o acordo extrajudicial não é propriamente jurisdição voluntária. A previsão do artigo 855D da CLT é de que “o juiz analisará o acordo, designará audiência se entender necessário e proferirá sentença”, o que implica dizer que o legislador presume a possibilidade de se aferir a existência de um litígio disfarçado de ajuste. Aliás, fosse realmente jurisdição voluntária, não haveria exigência de advogados diferentes, como prevê o artigo 855B.
Há coerência, portanto, na decisão proferida recentemente pelo Ministro Ives Gandra Martins Filho, chancelando cláusula de quitação geral do contrato de trabalho, em acordo extrajudicial. A realidade é que foi exatamente para isso que a Lei 13.467 incluiu na CLT a possibilidade de uma ação em que capital e trabalho comparecem à Justiça do Trabalho para dizer que já acertaram a forma de reparação de danos causados durante a relação de trabalho.
O objeto da demanda é o pedido de que a Justiça do Trabalho carimbe o ajuste, dando-lhe status de sentença judicial. A total ausência de interesse jurídico para propor uma demanda com tal conteúdo, pois o acordo extrajudicial, caso descumprido, poderia ser diretamente executado pela via judicial, obriga à reflexão sobre a finalidade da norma.
Por que prever esse tipo de ação judicial em uma realidade de descumprimento sistemático de direitos fundamentais trabalhistas, em que a Justiça do Trabalho já está assoberbada de demandas reclamando o não pagamento de verbas resilitórias, danos decorrentes de acidentes e doenças, assédio moral e horas trabalhadas sem qualquer remuneração?
A única razão pela qual um ação de acordo extrajudicial se justifica é para obter do Poder Judiciário Trabalhista a chancela de uma cláusula de quitação geral que implicará a vedação de acesso à justiça. Daí a coerência da decisão de Ives.
É preciso compreender a gravidade disso. Mesmo que o acordo seja para o parcelamento da rescisão, seu resultado será, caso inclua a cláusula de quitação geral, a proibição de que o empregado discuta em demandas futuras outros danos que tenha sofrido durante o vínculo, tais como danos decorrentes de doenças, assédio ou horas extraordinárias não remuneradas.
A prática de vedação de acesso à justiça através de ilegal e abusiva previsão de quitação geral é, portanto, a razão para o ajuizamento desses acordos e, ao mesmo tempo, o motivo pelo qual outras técnicas de impedimento da realização da justiça através de demanda judicial puderam ser inoculadas na CLT e vem sendo aceitas por parte da magistratura trabalhista.
A cada acordo homologado nesses termos, pelo menos uma demanda real que traria ao conhecimento do Estado lesões promovidas durante o vínculo, está, na prática, impedida de ser ajuizada. Essa redução, por sua vez, alimenta o argumento de que não precisamos mais da Justiça do Trabalho ou que ela poderá ser absorvida (e desnaturada) pela Justiça Federal.
Quem não atua na Justiça do Trabalho deve estar se perguntando como uma tal ação vem sendo proposta, se há exigência de que as partes estejam representadas por advogados diferentes. Portanto, há nesses processos, necessariamente, uma advogada ou um advogado que ali representa o trabalhador.
É aí que percebemos como nos tornamos agentes de uma lógica de destruição do Estado Social. Os atores da Justiça do Trabalho estão se ocupando de sua própria extinção. Se quem advoga para a classe trabalhadora simplesmente se negasse a fazer parte de um processo, cuja razão de existência é a vedação do ajuizamento de demandas futuras e, com isso, a contribuição para o discurso de extinção desse ramo especializado do direito, o acordo extrajudicial simplesmente não existiria na realidade.
E de nada serve defender apenas a impossibilidade de quitação geral em acordo extrajudicial. É preciso compreender que a própria ação de acordo extrajudicial, cuja existência só se justifica sob a lógica de vedação de acesso à justiça através da cláusula de quitação, é que deve ser combatida. E com ela as demais alterações que também impõem vedação de acesso à justiça, como aquela que descumpre regra constitucional sobre a gratuidade integral da justiça a quem não tem condições econômicas de discutir seus direitos, sem prejuízo da própria subsistência.
Bem sei que não é fácil criticar a conciliação, pois existe um discurso profundamente disseminado de que “conciliar é legal”, afinal de contas não se deve apostar no embate. Entretanto, em uma sociedade de violência estrutural como a nossa, o litígio trabalhista é no mais das vezes a única chance que se tem de fazer valer o direito e restaurar um mínimo de dignidade.
Afinal de contas, não podemos fingir desconhecer que na relação de trabalho o empregador pode exercer autotutela: despede, altera horário, até mesmo pune, embora não haja previsão legal para isso. O trabalhador, por todas as razões objetivas que o tornam, enquanto vendedor de sua força de trabalho, subordinado ao capital que o emprega, não pode exercer direitos, senão com a concordância de seu empregador.
No Brasil, essa situação revela-se ainda mais grave do que em outros países capitalistas, porque a ausência de qualquer proteção contra a despedida a um só tempo potencializa o poder do empregador e fragiliza a condição de quem vive do trabalho.
Para que a luta pela manutenção da Justiça do Trabalho se justifique, é preciso que a advocacia e a magistratura trabalhista compreendam que a prática de ajuizamento e homologação de acordos extrajudiciais, o incentivo a conciliações com quitação geral de contrato, assim como a consequente redução do quadro de servidores e varas, como decorrência lógica da redução de demandas, apenas contribuem para a retórica que defende a extinção.
A existência da Justiça do Trabalho, especialmente em cidades pequenas e distantes, não se justifica apenas em decorrência do número de ações ajuizadas, mas sobretudo em razão da necessidade de que trabalhadoras e trabalhadores tenham acesso ao Estado, pois em uma realidade na qual o salário mínimo é de R$ 998,00 e o desemprego já atinge 13 milhões de pessoas (enquanto mais de 27 milhões estão subaproveitadas) não haverá condições materiais para a busca dos direitos, se as trabalhadoras e trabalhadores tiverem de se deslocar de suas cidades até os maiores centros urbanos para ajuizar suas demandas.
O acesso à Justiça do Trabalho, que os acordos extrajudiciais, a lógica da sucumbência e a redução das unidades juidiciárias concretamente impedem, é condição de cidadania, pois é esse talvez o único espaço público em que trabalhadoras e trabalhadores se deparam, frente a frente, com os tomadores de seu trabalho e podem travar diálogos e recuperar parcialmente os danos que o trabalho por conta alheia lhes tenha impingido.
A constatação de que o desmanche dos direitos sociais conta também com a atuação, talvez involuntária, de quem vive a Justiça do Trabalho não deve nos desanimar. Ao contrário, deve servir para que se perceba que estamos enfrentando uma questão estrutural. Marx já havia denunciado o fato de que o Estado é forma política do capital e, portanto, serve para disfarçar e conservar as relações de dominação.
O que o século XX nos legou foi a experiência de uso do aparato estatal contra essa lógica, através do reconhecimento de direitos que promovem cidadania e inclusão social e do exercício, pelo Poder Judiciário, de uma função concretizadora de ordens jurídicas comprometidas com a redução das desigualdades e da miséria.
É justamente aí que se inscreve, historicamente, a Justiça do Trabalho.
Os trinta anos que nos separam do compromisso firmado em 1988 provam que essa função não é facilmente exercida. E talvez seja mesmo inviável, enquanto insistirmos em um modelo de organização social que aposta na acumulação de riqueza, na destruição do ambiente, na produção de descartáveis e na utilização de pessoas como mercadorias.
O fato é que enquanto utilizada bem mais como disfarce do que como verdadeiro elemento de promoção do que podemos chamar de “bem comum”, ordens jurídicas como a da Constituição de 1988 foram toleradas. Quando o Estado assumiu, ainda que com timidez, a função de fazer cumprir tais promessas, a reação se formou. A racionalidade, inclusive de quem atua na Justiça do trabalho, já havia, porém, sido invadida pela lógica conservadora e liberal.
A oportunidade que o processo de desmanche das regras de proteção social nos oferece é de reflexão sobre tudo o que podia ter sido o Brasil a partir de 1988, e não foi. Sobre tudo o que poderíamos (e deveríamos) ter feito enquanto agentes que atuam na Justiça do Trabalho, e não fizemos. Mas é também uma oportunidade para reconhecermos a necessidade de agir para além da denúncia de desmanche e reivindicar um direito do trabalho efetivamente comprometido com a inclusão e com as possibilidades de vida digna. Um direito do trabalho constitucional.
A Justiça do Trabalho que precisa resistir e continuar existindo tem que cumprir sua missão institucional de garantir direitos sociais de quem vive do trabalho. Essa é a única Justiça do Trabalho pela qual vale a pena lutar.
Por VALDETE SOUTO SEVERO – Presidenta da AJD – Associação Juízes para a Democracia. Diretora e Professora da FEMARGS – Fundação Escola da Magistratura do Trabalho do RS; Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP e Juíza do Trabalho.