Prisão de líderes catalães independentistas motivou atos em todo o país; após atos, moradores da cidade saem às ruas para varres e apagar os incêndios
Existe beleza na destruição. Tem a ver com o civismo. Um casal de idosos —ele de bermuda, ela de camisola— desceu na noite de quarta-feira usando tênis para empurrar algumas lixeiras que os radicais haviam colocado no meio da rua, ao lado dos carros e das árvores, em uma rua estreita que poderia ter se tornado uma ratoeira infernal caso tivesse pegado fogo. O casal contou com a ajuda a ajuda de alguns rapazes. Não disseram nada, não gritaram, não censuraram. Foram para a rua debaixo, até a rua Roger de Llúria e voltaram para casa.
Nesta sexta-feira, Barcelona vive um dia de greve geral e o quinto de manifestações desde que independentistas catalães foram sentenciados à prisão. Uma grande manifestação está marcada para as 17h (20h, no horário de Brasília). Manifestantes estão em marcha pelas estradas que desembocam na cidade há três dias. Dezenas de milhares de manifestantes acenando com bandeiras catalãs e bradando “Independência!” e “Liberdade para os prisioneiros políticos”. Há famílias com carrinhos de bebê e ciclistas, num protesto que promete ser essencialmente pacífico.
Os catalães reivindicam a independência em relação à Espanha e exigem o respeito ao direito dos povos à autodeterminação, que lhes está sendo negado pelo governo sediado em Madri.
Na noite de quinta, as manifestações deixaram 42 feridos. Depois de três dias de tumultos, começa a haver uma coreografia de organização e limpeza quando os protestos terminam, uma ordem absolutamente enlouquecida da qual os serviços públicos de limpeza e extinção de incêndios são parte fundamental.
Na quinta, uma jovem que se apresenta como Cris, dedicava sua noite ao que o casal de idosos fez pela manhã: ir de uma fogueira a outra para tentar apagá-las, retirar lixeiras, afastar papéis e materiais inflamáveis. Às vezes, ela baixa os braços, olha para a rua à espera dos bombeiros e balança a cabeça. Nessa noite, às dez horas, ela está sozinha em um enorme cruzamento com três incêndios e rodeada por cerca de trinta jovens com os rostos cobertos que não falam com ela, com exceção de um, que recomenda que ela não tente apagar um incêndio dessa maneira porque acabará espalhando.
Cris se declara pacifista e faz parte de um grupo de 12 jovens que se organizam para tentar impedir a violência declarada nas ruas. São independentistas e não independentistas, como essas dezenas de pessoas que apagam brasas, põem no lugar o que não foi queimado e limpam as ruas quando vão embora os radicais, os violentos que montam barricadas com lixeiras para impedir a passagem das viaturas policiais e voltam depois para atear fogo nelas.
Às três da madrugada de quinta-feira, dois caminhões de bombeiros se encontram no cruzamento das ruas Roger de Llúria e Consell. Eles param e descem para se abraçar aos gritos. Vinte minutos antes, dois agentes caminhavam por um mar de papel higiênico iluminado por algum pequeno incêndio entre a Gran Vía e a Rua de La Marina. Nessa região, Roger, de 34 anos, passeava com seu cachorro pela rua; em um mar de restos de lixo, lixeiras tombadas, entulho. Roger recolheu as fezes do cachorro. “Não sei, é o costume”, disse, brincando. “Não somos a cidade que estão pintando fora”, afirmou mais sério, entrando em seu prédio.
Nas noites de tumulto em Barcelona, a vida continua nas ruas do centro como metáfora, por exemplo, em restaurantes e bares abertos com as grades abaixadas. E das entradas dos edifícios semelhantes às que Roger se mete com seu cachorro, saem correndo moradores que veem seus carros ou suas moradias ameaçados; eles fazem isso para ajudar, para proteger a rua, alguns para escapar: cada um é um mundo quando as chamas surgem na porta de seu prédio. São cenas que chamam atenção porque, até onde os cronistas viram em duas noites, os encapuzados com óculos de esqui, um lenço no rosto e uma mochila não lhes dizem nada; eles veem como afastam as lixeiras, por exemplo, e depois as colocam de volta no meio da rua, se as colocam, e isso muito mais tarde.
“Não estamos aqui para brigar com as pessoas, é nossa gente”, diz no dia seguinte Ricardo, um rapaz de 24 anos que participa dos distúrbios (“quando me batem, respondo, nós não começamos nada”). Essa linha, diz ele, é endossada pelos radicais: não enfrentar moradores, não fazer nada quando os moradores retirarem o que eles colocaram no meio da rua ou apagarem o que eles incendiaram. Eles se preocupam tanto com o apoio popular quanto com fazer que entendam que os “incômodos” ou “transtornos” causados são em sua defesa.
Essa linha teórica em um movimento tão organizado quanto descontrolado respeita o justo. Verbalmente, sempre surgem insultos, provocações e gestos obscenos às pessoas que nas varandas tentam apagar o fogo. É no cara a cara quando a tensão se amortece. E se não o faz, dois ou três com ascendência sempre aparecem para dar ordem de “não dar bola”. Cris, sem ir mais longe, é criticada por alguns radicais por suas palavras (havia pedido que não incendiassem uma rua transversal, por causa do perigo que representaria para os edifícios). “Vai dormir”, diz um rapaz de rosto descoberto. Cris, exausta, tira um livro da mochila e mostra a ele: “Você tem um sobre o bom manual do bom independentista?”.“Não desrespeite, menina”, intervém uma senhora. Um incêndio enorme acaba de começar nas proximidades e Cris deixa a conversa. Vê-se ao longe sua figura sozinha com a mochila nas costas, como uma sombra chinesa, correndo de um lado para o outro no meio da noite para apagar incêndios tão grandes que a queimariam se ela chegasse muito perto. Quanto mais impossível sua missão, mais real ela é e aqueles que dedicam as noites a fazer o mesmo.
Fonte: El país