Por Marcos Aurélio Ruy
Desde a Era Vargas, em 12 de outubro é comemorado o Dia das Crianças no Brasil, mas, em pleno século 21, há o que comemorar? Pelos dados de pesquisas recentes nem um pouco. A corrida à eleição dos Conselhos Tutelares, com religiosos fundamentalistas disputando esse espaço para propagar a repressão como norma de conduta e de educação, comprova que mais do que uma data comercial, é necessário que se revejam conceitos sobre a infância e a juventude.
“Militarizar as escolas públicas, por exemplo, é apostar na antítese de um país saudável e com condições de convívio social. Aliás, se não servir para a denúncia, de nada serve esse dia, já transformado, sob a lógica do consumo, em mais uma data em que nos vemos constrangidos a presentear as crianças que conseguem ter uma infância minimamente boa em nosso país”, afirma Valdete Souto Severo, presidenta da Associação Juízes para a Democracia (AJD).
De acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 38,79 milhões de pessoas tinha até 13 anos, em 2017. A secretária de Políticas Sociais da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil, Vânia Marques Pinto ressalta a necessidade de o movimento sindical e movimentos sociais serem mais atuantes na defesa dos direitos da infância e da juventude.
Bola de meia, bola de gude (Fernando Brant e Milton Nascimento)
“Precisamos nos inteirar do conteúdo do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), de 1990, e da Constituição Federal, de 1988, para atuarmos na defesa dos direitos dessa parcela significativa da população. Esse trabalho é fundamental para sonharmos com um futuro digno para o Brasil”, diz.
Para Valdete “o Dia das Crianças deve ser, de denúncia do número de crianças que ainda vivem em estado de miséria em nosso país, dos índices de violência contra elas praticados e das políticas públicas que vêm sendo implementadas.”
Ela se refere ao 13º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado recentemente e mostra que a polícia matou 6.220 pessoas em 2018, sendo 77,9% entre 15 e 29 anos. Foram registrados 66.041 estupros no mesmo período, com 53,8% das vítimas com menos de 13 anos. A maioria dos casos ocorreram dentro de casa.
Números do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) assinalam que em 2018 o país tinha quase 2 milhões de crianças de 4 a 17 fora da escola. Dados oficiais do IBGE dizem que o Brasil tem 1,8 milhão de crianças e adolescentes de 5 a 17 anos em situação de exploração pelo trabalho, mas esses números são contestados e podem ser bem maiores.
Vânia acentua que “a hipocrisia dos conservadores vê maldades em obras de artes”, mas “tolera a violência doméstica, o trabalho infantil e o do abuso sexual.” A juíza do trabalho e professora universitária, Valdete afirma que é necessário avançarmos para uma “compreensão de que manter as crianças alimentadas, na escola e com um convívio familiar e social protegido contra a violência não é algo que se consiga através de um texto de lei”.
De acordo com a juíza, “o ECA é uma legislação exemplar em termos de proteção e reinserção social de crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, mas não é passível de ser aplicado integralmente em uma realidade de desemprego estrutural, aposta na concentração de renda, violência policial e culto a algumas hipocrisias insustentáveis, como a criminalização do aborto ou a defesa da aprendizagem e do estágio como formas sadias de ingressar no mercado de trabalho.”
Desde 1959, existe a Convenção Sobre os Direitos da Criança, criada pelo Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) para elevar o grau de respeito aos direitos das crianças e jovens no mundo. A convenção garante liberdade, segurança, paz, escola e saúde a todas as crianças.
“Se os nossos governantes se preocupassem mais em ampliar os investimentos em educação e saúde públicas, em garantir a proteção e segurança das crianças, com políticas públicas em favor dos direitos e da vida decente para as famílias, certamente o país seria outro”, assegura Vânia.
Enquanto Valdete conta que “o texto constitucional garante um salário mínimo que permita uma vida boa, para o trabalhador e para a sua família, e um rol de direitos, inclusive em relação à infância e juventude, cuja efetividade estamos muito longe de alcançar.”
Uma história, de Paulo Tatit e Zé Tatit (grupo Palavra Cantada)
Em seu artigo 227, a Constituição de 1988 diz que “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Mas, assegura Valdete, “os índices de trabalho infantil e de violência contra crianças e adolescentes são sintomas de uma realidade que produz cada vez mais miseráveis e excluídos. Realidade agravada por discursos oficiais que minimizam a gravidade do trabalho infantil e pela lógica de encarceramento da população mais vulnerável.”
Como juíza ela acredita que “a melhor contribuição que o Poder Judiciário pode e deve dar” para a sociedade avançar no respeito aos direitos da infância e da juventude “é na prolação de decisões garantistas, que efetivem os direitos fundamentais já contidos em nossa Constituição e façam valer a proteção do Estatuto da Criança e do Adolescente.”
Ela lembra ainda que a Lei do Aprendiz (10.097/2000) admite o trabalho para jovens de 14 a 16 anos como aprendiz e em meio período e para jovens de 16 anos ou mais sem prejuízo dos estudos e nunca em trabalhos que possam oferecer riscos à saúde e ao desenvolvimento dessas faixas etárias.
Valdete conclui que “nossas crianças e jovens só estarão realmente protegidas quando houver uma distribuição de recursos radicalmente diversa, quando houver uma perspectiva de convívio social que seja inclusiva e respeite as diferenças e, sobretudo, quando o que é público, em especial a força estatal, não se apresentar a elas apenas sob a forma de violência e repressão policial.”
“Então”, argumenta Vânia, “que este Dia das Crianças nos leve a profundas reflexões sobre o que estamos fazendo com nossas crianças e jovens e sobre o futuro que queremos para o nosso país”.