Por Marcos Aurélio Ruy
A compositora e cantora Pitty resolveu em 2009 a recontar a história da Amélia, aquela que “não tinha a menor vaidade” e “achava bonito não ter o que comer” (Ai que Saudades da Amélia, de Ataulfo Alves e Mário Lago, lançada em 1942).
Na versão de – “Desconstruindo Amélia” -, a moça resolve mudar e decide ser sujeita da sua história e mergulha de cabeça para se impor. Mesmo assim, ganha menos que o namorado, apesar de estudar mais. As estatísticas comprovam que as mulheres ganham em média cerca de 26% a menos que os homens em mesmas funções.
Além de cumprir dupla jornada porque poucos homens dividem as tarefas domésticas e os cuidados com os filhos. Mas as mulheres vão à luta para mostrar que são donas de si e têm direito a uma vida digna também.
Desconstruindo Amélia (2009), de Pitty
Já é tarde, tudo está certo
Cada coisa posta em seu lugar
Filho dorme, ela arruma o uniforme
Tudo pronto pra quando despertar
O ensejo a fez tão prendada
Ela foi educada pra cuidar e
servir
De costume, esquecia-se dela
Sempre a última a sair
Disfarça e segue em frente
Todo dia até cansar
E eis
que de repente ela resolve então mudar
Vira a mesa, assume o
jogo
Faz questão de se cuidar
Nem serva, nem objeto
Já não
quer ser o outro
Hoje ela é um também
A despeito de tanto mestrado
Ganha menos que o namorado
E
não entende o porquê
Tem talento de equilibrista
Ela é
muita, se você quer saber
Hoje aos 30 é melhor que aos 18
Nem Balzac poderia
prever
Depois do lar, do trabalho e dos filhos
Ainda vai
pra night ferver
Disfarça e segue em frente
Todo dia
até cansar (Uhu!)
E eis que de repente ela resolve então
mudar
Vira a mesa, assume o jogo
Faz questão de se cuidar
(Uhu!)
Nem serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje
ela é um também
Uhu, uhu, uhu
Uhu, uhu,
uhu
Disfarça e segue em frente
Todo dia até cansar
(Uhu!)
E eis que de repente ela resolve então mudar
Vira a
mesa, assume o jogo
Faz questão de se cuidar (Uhu!)
Nem
serva, nem objeto
Já não quer ser o outro
Hoje ela é um
também
Já os compositores Jota JR. e Luis Antônio revelam a dureza da vida da mulher dos morros cariocas na antológica marchinha do carnaval de 1955, “Lata d’Água”. Pela visão dos músicos a Maria “sobe o morro e não se cansa” e ainda “pela mão leva a criança”.
A moça “lava roupa lá no alto” para ganhar o “pão de cada dia” e ainda sonha “com a vida do asfalto”. Para fugir da miséria imposta ainda hoje às mulheres negras que estão na base da pirâmide social sofrendo todos os tipos de assédio e ganhando menos que a metade dos homens brancos.
Lata D’Água (1955), de
Jota Jr. e Luis Antônio
Lata d’água na
cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o morro e não se
cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai Maria
Lata
d’água na cabeça
Lá vai Maria, lá vai Maria
Sobe o
morro e não se cansa
Pela mão leva a criança
Lá vai
Maria
Maria lava roupa lá no alto
Lutando pelo pão
de cada dia
Sonhando com a vida do asfalto
Que acaba onde o
morro principia
Eduardo Dussek reforça a discriminação enfrentada pelas mulheres trabalhadoras com a canção “Brega Chique”, de 1984. Na palavra cantada de Dussek ela foi trabalhar de doméstica para um casal de estrangeiros, traficantes de drogas e se deu mal por ser trabalhadora e pobre acabou na cadeia, mas deu a volta por cima.
“Doméstica/Traficante disfarçada/De doméstica/Era manchete nos jornais/O casal lhe deu pra trás/Sujando brabo pra doméstica”, canta o autor ao denunciar a parcialidade de uma justiça classista e preconceituosa. Que não enxerga a falta dos direitos trabalhistas da empregada, mas a prende sem investigar a fundo o crime.
Brega Chique (1984), de Eduardo Dussek
Foi trabalhar
Recomendada pra dois
gringos
Logo assim
Que chegou do interior
Era um
casal
Tipo metido a granfino
Mas o salário
Era tipo,
um horror…
A tal da madame, tinha mania
Esquisitona
de bater
E baixava a porrada
Quando a coisa tava errada
Não
queria nem saber…
Doméstica
Ela era
Doméstica
Sem
carteira assinada
Só caía em cilada
Era
empregada
Doméstica…
Nunca notou
A quantidade
de giletes
Não reparou
A mesa espelhada no salão
Não
perguntou
O quê que era um papelote
Baixou “os
home”
Ela entrou no camburão…
Na
delegacia
Sua patroa americana ameaçou:
“Lembra que
eu sou
Uma milionária,
Eu fungava, de gripada
Não
seja otária, por favor”…
Doméstica
Traficante
disfarçada
De doméstica
Era manchete nos jornais
O
casal lhe deu prá trás
Sujando brabo prá doméstica…
No
presídio aprendeu
Com as companheiras
A ser dar bem
A
descolar, como ninguém
Ficou famosa
No ambiente
carcerário
Com a mulata
Que nasceu pra ser alguém…
Pois
não é que a
Doméstica!
Conseguiu uma prisão,
doméstica
Saiu por bom comportamento
Mas jurou nesse
momento
Vingar a raça das domésticas…
Então
alguém
Lhe aconselhou logo de cara
“Dá um passeio
Vê
se arranja um barão”
Porque melhor
Que o interior ou
que uma cela
É ter turista e faturar
No calçadão…
Até
que um dia
Um Mercedinho prateado buzinou
Era um louro
alemão
Que lhe abriu a porta do carro
E lhe tacou um
bofetão…
Doméstica
Virou uma
baronesa
Doméstica
Mesmo com as taras do barão
Segurou
a situação
Levando uma vida doméstica….
Realizada
em sua mansão
Em Stuttgart
Ouvindo Mozart de Beethoven de
montão
Com um pivete
Mulatinho pela casa
Que era
herdeiro
De olho azul como o barão…
Precisou de
uma babá
Botou um anúncio
Bilíngue no jornal
Seu
mordomo abriu a porta
Uma loira meio brega
Uma yankee de
quintal…
Doméstica
Era a americana, de doméstica
A
nega deu uma gargalhada
Disse:
“Agora tô vingada
Tu
vai ser minha
Doméstica”