Por José Geraldo de Santana Oliveira*
No dia 20 de setembro corrente foi publicada a Lei N. 13874, que “Institui a Declaração de Direitos da Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; [..]; e dá outras providências”.
Essa Lei, resultante da conversão da Medida Provisória (MP) 871, representa absoluta veneração da propriedade e do “livre mercado”, transformando-os na única razão de ser das ordens econômica e social brasileiras.
O poder absoluto que ela confere à liberdade econômica e ao livre mercado faz lembrar a arrogância e a empáfia de Aristarco, tirano personagem da obra de Raul Pompéia, “O Ateneu”, que dizia de si mesmo: “Acima de Aristarco – Deus! Deus tão somente: abaixo de Deus – Aristarco”.
Para além do tempo, do lugar e do cenário, há, entre a Lei em questão e o personagem Aristarco, uma colossal diferença, qual seja a de que este, por falsa modéstia, reconhecia Deus acima dele, algo que aquela não reconhece, pois, para ela, nada está acima da liberdade econômica e do livre mercado.
Já no Art. 1º, § 1º, estabelece a sua prevalência “na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”.
Para suplantar qualquer dúvida, quanto à sua supremacia, dispõe, no § 2º do Art. 1º: “Interpretam-se em favor da liberdade econômica, da boa-fé e do respeito aos contratos, aos investimentos e à propriedade todas as normas de ordenação pública sobre atividades econômicas privadas”.
Para sacramentar a prevalência dos interesses da liberdade econômica na interpretação de normas jurídicas, estipula, no seu Art. 3º, que são direitos de toda pessoa natural ou jurídica, dentre outros:
“II – desenvolver atividade econômica em qualquer horário ou dia da semana, inclusive feriados, sem que para isso esteja sujeita a cobranças ou encargos adicionais, observadas:
a) as normas de proteção ao meio ambiente, incluídas as de repressão à poluição sonora e à perturbação do sossego público;
b) as restrições advindas de contrato, de regulamento condominial ou de outro negócio jurídico, bem como as decorrentes das normas de direito real, incluídas as de direito de vizinhança; e
c) a legislação trabalhista;
III – definir livremente, em mercados não regulados, o preço de produtos e de serviços como consequência de alterações da oferta e da demanda;
V – gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário”.
Na mesma esteira e com idêntica finalidade, altera diversos Arts. do Código Civil (CC), estabelecendo, no Art. 113, §§ 1º e 2º:
“§ 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I – for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;
II – corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;
III – corresponder à boa-fé;
IV – for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e
V – corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
§ 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.”
Como se não bastasse tudo isso, acrescenta o Art. 421-A ao CC, que estabelece:
“Art. 421-A. Os contratos civis e empresariais presumem-se paritários e simétricos até a presença de elementos concretos que justifiquem o afastamento dessa presunção, ressalvados os regimes jurídicos previstos em leis especiais, garantido também que:
I – as partes negociantes poderão estabelecer parâmetros objetivos para a interpretação das cláusulas negociais e de seus pressupostos de revisão ou de resolução;
II – a alocação de riscos definida pelas partes deve ser respeitada e observada; e
III – a revisão contratual somente ocorrerá de maneira excepcional e limitada”.
Como o Art. 8º, § 1º, da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) — com a redação dada pela Lei N. 13467/2017, que é a lei da reforma trabalhista — determina que “O direito comum será fonte subsidiária do direito do trabalho”, parece induvidoso que a busca da aplicação dos citados dispositivos da Lei N. 13874 no processo do trabalho será a tônica das contestações às reclamações trabalhistas, com a espúria finalidade de fazê-los prevalecer sobre as normas trabalhistas, ao falacioso argumento de que as condições lesivas aos trabalhadores foram “livremente pactuadas” por “acordo individual simétrico” entre as partes, o que as torna insuscetíveis de interpretações desfavoráveis à liberdade econômica, nos termos da Lei N. 13874/2019.
Dando prosseguimento à triste saga de redução e supressão de direitos trabalhistas, a lei sob comentários promoveu diversas alterações na CLT, sendo que nenhuma delas, por óbvio, foi introduzida com o propósito de beneficiar o trabalhador e/ou de lhe dar segurança jurídica. Ao contrário, como sói acontecer em todas normas recentes, visam a prejudicá-lo.
Foram alterados os seguintes Arts., da CLT:
“Art. ……………………………………………………………………………………………
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§ 2º A Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS) obedecerá aos modelos que o Ministério da Economia adotar.
§ 3º (Revogado).
§ 4º (Revogado).” (NR)
Art. 14. A CTPS será emitida pelo Ministério da Economia preferencialmente em meio eletrônico.
Parágrafo único. Excepcionalmente, a CTPS poderá ser emitida em meio físico, desde que:
I – nas unidades descentralizadas do Ministério da Economia que forem habilitadas para a emissão;
II – mediante convênio, por órgãos federais, estaduais e municipais da administração direta ou indireta;
III – mediante convênio com serviços notariais e de registro, sem custos para a administração, garantidas as condições de segurança das informações.” (NR)
Art. 15. Os procedimentos para emissão da CTPS ao interessado serão estabelecidos pelo Ministério da Economia em regulamento próprio, privilegiada a emissão em formato eletrônico.” (NR)
Art. 29. O empregador terá o prazo de 5 (cinco) dias úteis para anotar na CTPS, em relação aos trabalhadores que admitir, a data de admissão, a remuneração e as condições especiais, se houver, facultada a adoção de sistema manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções a serem expedidas pelo Ministério da Economia.
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§ 6º A comunicação pelo trabalhador do número de inscrição no CPF ao empregador equivale à apresentação da CTPS em meio digital, dispensado o empregador da emissão de recibo.
§ 7º Os registros eletrônicos gerados pelo empregador nos sistemas informatizados da CTPS em meio digital equivalem às anotações a que se refere esta Lei.
Art. 74. O horário de trabalho será anotado em registro de empregados.
§ 1º (Revogado).
§ 2º Para os estabelecimentos com mais de 20 (vinte) trabalhadores será obrigatória a anotação da hora de entrada e de saída, em registro manual, mecânico ou eletrônico, conforme instruções expedidas pela Secretaria Especial de Previdência e Trabalho do Ministério da Economia, permitida a pré-assinalação do período de repouso.
§ 3º Se o trabalho for executado fora do estabelecimento, o horário dos empregados constará do registro manual, mecânico ou eletrônico em seu poder, sem prejuízo do que dispõe o caput deste artigo.
§ 4º Fica permitida a utilização de registro de ponto por exceção à jornada regular de trabalho, mediante acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho.”
Dentre as alterações acima, merecem destaque as que modificaram os Arts. 29 e 74. A primeira porque, em prejuízo dos trabalhadores, aumentou o prazo para a anotação do contrato de trabalho da CTPS e as suas respectivas condições, de dois dias corridos para cinco dias úteis.
As alterações do Art. 74 são altamente nocivas aos trabalhadores, por várias razões, sobressaindo as seguintes:
– O controle de jornada (ponto) somente é obrigatório nas empresas com mais de 20 (vinte) empregados; a redação anterior exigia-o das empresas com mais de 10 (dez) empregados.
– Cria a esdrúxula e lesiva figura de registro de ponto por exceção à jornada, que consiste na dispensa de controle de entrada e saída do empregado, fazendo letra morta do § 1º do Art. sob realce, o que, até prova em contrário, de responsabilidade do empregado, pressupõe que se cumpriu fielmente a jornada regular, nela incluídos os intervalos para repouso e alimentação.
Por esse dispositivo legal, somente eventuais horas extras devem ser anotadas no controle de ponto; não havendo anotações dessa natureza, não há de se falar em trabalho extraordinário.
A quem essa alteração beneficiará? Parece fora de dúvida que apenas as empresas dela se beneficiarão.
Foram revogados os Arts. 17, 20, 21, 25, 26, 30, 31, 32, 33, 34, 40 inciso II, 53, 54, 56, 141, 415 Parágrafo único, 417, 419, 420,421,422 e 633. Dentre essas revogações, as que efetivamente trazem prejuízos aos trabalhadores são as dos Arts. 53, 54 e 56, que estabeleciam multas pela falta de anotação do contrato e de suas condições na CTPS, bem como pela sua retenção.
Frise-se que a Câmara Federal aprovou a revogação do Art. 319 da CLT, que veda o trabalho docente aos domingos. Porém, essa revogação foi excluída pelo Senado, por representar o que o Supremo Tribunal Federal (STF) chama de contrabando legislativo.
*José Geraldo de Santana Oliveira é consultor jurídico da Contee