Por Gilson Reis*
A educação brasileira passou, ao longo dos séculos, por diferentes fases, distintas ideias pedagógicas e diversas práticas educacionais que vão desde a catequização jesuítica até o cenário de enfrentamentos que vivenciamos hoje, nesta segunda década do século XXI.
Em seu livro “História das ideias pedagógicas no Brasil”, o filósofo e pedagogo Demerval Saviani, professor emérito da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dividiu essa trajetória em quatro períodos. O primeiro, abrangendo as concepções pedagógicas que vigoraram do início da colonização até meados do século XVIII, é justamente o que pressupôs, pela influência dos jesuítas, um monopólio religioso sobre o processo educacional. O segundo, que se estendeu até o início da Era Vargas, corresponde à época em que a vertente religiosa passou a dividir espaço com a atuação leiga na instrução pública, mas ainda ligada a uma pedagogia dita tradicional. O terceiro, até 1969 — ano do endurecimento da ditadura civil-militar que tinha sido instaurada em 1964 —, foi marcado pelo predomínio da chamada pedagogia nova, movimento no qual se destacam nomes como Anísio Teixeira, que articulou as bases filosóficas e políticas da renovação escolar, Florestan Fernandes, Darcy Ribeiro e, como líder do movimento de educação popular, Paulo Freire. E, por fim, o quarto, até o início dos anos 2000, com a crise da Escola Progressiva e a configuração de uma concepção pedagógica tecnicista e produtivista.
Esse último período merece um recorte especial, uma vez que ele próprio se subdivide em três tempos. De 1969 a 1980 — período que, não por acaso, abrange os chamados anos de chumbo e, posteriormente, a progressiva derrocada da linha mais dura do governo militar, bem como a reascensão dos movimentos de trabalhadores —, sobressaiu-se a pedagogia tecnicista. Não foi em vão. As reformas educacionais levadas a cabo pela ditadura civil-militar intencionavam, ainda que não declaradamente, eliminar nas escolas o espaço para o pensamento crítico, e isso passava por um pretenso pressuposto de neutralidade científica, tentando reordenar o processo pedagógico de modo a torná-lo objetivo e operacional, imputando-lhe características do próprio modelo industrial.
A partir dos anos 1980 até o início da década de 1990, contudo, o Brasil viveu sem processo de redemocratização, no meio do qual está toda a discussão da Assembleia Constituinte e consequente promulgação da Constituição de 1988 — não chamada à toa de Constituição Cidadã —, que elegeu precisamente a educação como primeiro dos direitos sociais fundamentais. É nesse esteio de resgate democrático — durante o qual são fundadas as entidades educacionais e de trabalhadores em educação, como a Contee —, que surgem as pedagogias contra-hegemônicas, entre as quais a pedagogia histórico-crítica formulada pelo próprio Saviani, que, contrariamente ao modelo conteudista, defende o acesso aos conhecimentos e sua compreensão por parte do estudante como instrumento de reflexão e transformação da sociedade. Nas palavras do pedagogo, a “prática social põe-se, portanto, como o ponto de partida e o ponto de chegada da prática educativa”.
“O MEC não pode tratar a universidade como uma repartição”
Todavia, a ascendência das políticas neoliberais nos anos 1990 até o início deste século interferiu nos modelos pedagógicos, instituindo um neoprodutivismo determinado pelos interesse do capital, o que Savini batiza de “pedagogia da exclusão”. De um lado, no que toca à escola pública, o próprio Estado se insere no sentido de uma avaliação quantitativa, quase fabril, buscando obter o máximo de resultados numéricos — aumento de vagas e melhoria de índices, por exemplo, mas sem uma aprendizagem crítica efetiva e sem alterar a lógica perversa da exclusão do mercado de trabalho e/ou da participação ativa na sociedade — com os recursos destinados à educação.
De outro, tem-se o crescimento indiscriminado do ensino privado não mais como confessional, comunitário ou sem fins lucrativos, e, sim, em sua vertente mercantil. Daí advém o processo de financeirização, oligopolização e desnacionalização do ensino no Brasil, primeiramente no nível superior, mas que se estende cada vez mais para a educação básica. E daí se explica também o agravamento do atual cenário, erigido sobre as bases do desmonte e consequente privatização, da escola e da universidade pública.
Esse retrospecto histórico é essencial para que entendamos, hoje, as forças que estão em disputa e nossa função em defesa não apenas da educação, genérica, mas de qual educação. Uma primeira questão que se tem colocado entre os formuladores de políticas públicas é justamente essa preocupação com o papel da educação. Muitas vezes, inclusive nessas últimas manifestações nacionais das quais participamos — a Greve Nacional da Educação de 15 de maio, o Dia Nacional em Defesa da Educação de 30 de maio, a Greve Geral da Classe Trabalhadora de 14 de junho e este último Tsunami da Educação de 13 de agosto —, falamos na defesa da educação como pauta e tema geral. Devemos, no entanto, não só discutir o processo de defesa da educação, mas dar substantivos e adjetivos à nossa defesa.
É imprescindível ter como referência uma ideia-força: a educação que defendemos é uma educação pública, estatal (não serve qualquer educação pública que não como política de Estado), laica (precisamos regatar a laicidade do Estado nacional), democrática (combatendo as forças que querem calar o pensamento crítico) e referenciada na formação plena da cidadania e dos direitos plenos dos cidadãos. Isso implica termos projetos pedagógicos claros, em contraponto, inclusive, à Base Nacional Comum Curricular (BNCC) aprovada à revelia de uma discussão profunda com os atores educacionais e com a sociedade civil organizada. Defender a educação, no discurso, todo mundo defende; até o capital, o mercado, todo o consórcio economicamente ultraliberal e político-moralmente protofascista que se apropriou do País a partir do golpe de 2016. Por isso, é preciso substantivar nosso projeto de educação, diferenciando-o do deles.
Três argumentos preliminares se mostram fundamentais para compreendermos o que estamos debatendo sobre educação pública. O primeiro é o de que, hoje, a educação está no centro do retrocesso político, econômico e social pelo qual passa o país. O princípio consagrado na Constituição de 1988 está sob ataque de todas as formas possíveis. A política do atual governo, como também foi a de seu antecessor, é servil ao mercado financeiro, cujo objetivo é ampliar os lucros, privatizar a educação superior brasileira, facilitar a entrada do capital financeiro também no ensino básico e agradar, com ganhos certos, as grandes corporações internacionais de capital aberto que atuam no Brasil no domínio de instituições públicas e privadas. Isso implica o fim da educação como direito e como dever do Estado, bem como a colocação do Brasil, no âmbito da educação, na lógica do mercado, e não da formação com qualidade de nossas crianças e jovens.
Para tanto, os ataques passam pelo congelamento dos investimentos públicos, via Emenda Constitucional 95; pelos cortes nos recursos, não só nos orçamentos das universidades e institutos federais, mas também em programas da educação básica; pela inviabilização do Plano Nacional de Educação (PNE) e de metas como a destinação de 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a educação pública, a instituição do Custo Aluno Qualidade (CAQ) e Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e a implementação do Sistema Nacional de Educação, englobando rede pública e setor privado; a destinação de bolsas dos Programa Universidade Para Todos (ProUni), em sua maioria, para cursos na modalidade Educação a Distância (EaD), sem garantia de qualidade e com rebaixamento da formação, aliada à desprofissionalização do magistério; a uberização da atividade docente; a abertura ao homeschooling, que tanto vai ao encontro da demanda do movimento Escola Sem Partido — pretensamente poupando os estudantes da suposta “doutrinação ideológica” e do imaginário “marxismo cultural” que pairariam fantasmagoricamente sobre as salas de aula — quanto do favorecimento dos estabelecimentos privados de ensino, com fins lucrativos, por meio da abertura de um outro nicho de mercado: o das avaliações.
Devemos discutir a educação como um direito assegurado ao povo brasileiro e, portanto, uma segunda questão que precisamos debater e reafirmar é que a educação, como nós conhecemos e defendemos, está na fronteira da resistência democrática no país. Se olharmos o papel do Estado brasileiro e das várias organizações que compõem sua estrutura — os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário, a imprensa, as múltiplas entidades da sociedade civil —, veremos que grande parte está sob o comando do capital, do mercado, dos que encabeçam a série de retrocessos que enumeramos aqui e tantos outros.
Por causa disso é que esses setores buscam o controle, de forma desesperada e articulada, também sobre a educação: porque ela é um dos poucos espaços onde ainda há disputa de poder. A cruzada ideológica empreendida por essas forças e seu conjunto de formulações — como o movimento Escola Sem Partido, o combate a uma suposta ideologia de gênero… — visa a inviabilizar esta que é uma das últimas fronteiras do espaço democrático no Brasil.
Isso nos leva à terceira preliminar: a educação como instrumento de resistência. A educação está para o nosso momento histórico como os metalúrgicos estavam para os anos 1970 e 1980. É ela o fator decisivo da mobilização política nacional, desde o golpe de 2016 — que não foi um golpe apenas contra a presidenta Dilma Rousseff, e, sim, contra a própria democracia brasileira — até mais recentemente, agora, nessas grandes manifestações públicas que tomaram as ruas e praças do País. A educação nacional ganha importância fundamental na luta política e temos uma responsabilidade histórica com essa luta.
*Gilson Reis é coordenador-geral da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino — Contee