Por Táscia Souza*, na Carta Capital
O primeiro olhar foi de desconfiança. Num determinado momento, até de certo desdém. Era natural. Antes de qualquer explicação mais filosófica, o professor barbudo, de calça jeans e tênis All Star, estava frente a uma turma de adolescentes. Mais especificamente, era uma turma de ensino médio, e, correndo o risco de estar sendo leviana, sem qualquer embasamento do ponto de vista da psicologia juvenil, o que me lembro dessa época é o quanto ela pode ser afeita ao tédio, a ponto de muitos docentes precisarem lutar diariamente para dar suas aulas como se o ato fosse um golpe de sorte, e não o resultado árduo de anos de estudo e horas de preparo. Uma moeda atirada para cima: cara — entusiasmo; coroa — enfado, capazes de serem provocados na mesma proporção.
Havia algo diferente ali, porém. Mais profundo. Mais sintomático. E muito mais simbólico. A Escola Municipal Padre Wilson é relativamente pequena e a única do bairro Igrejinha, no extremo da região norte de Juiz de Fora, mais próximo do distrito rural de Rosário de Minas do que do centro urbano do município. Foi lá que cerca de vinte tambores, com suas peles de couro e suas chitas com estampas coloridas, foram descarregados naquela segunda-feira, diante dos pares de olhos ressabiados. Não era para menos. O tambor mineiro — e, mais especificamente, a cultura congadeira que ele representa — há muito deixou de ser comum por essas bandas da Zona da Mata, ainda que estejamos no interior de Minas Gerais e a poucas horas de cidades onde seu ribombar não apenas soa forte, mas é costumeiramente presente.
Além disso — e esse é um fenômeno que possivelmente se repete em outras periferias Brasil afora —, apesar dos resquícios de uma tradição católica nos nomes da escola e do próprio lugar, era visível, naquele grupo de jovens, o reflexo de uma tendência que tem sido, se não eminente em comunidades como aquela, ao menos crescentemente protestante. Não se trata de uma crítica, mas de uma constatação: para alguns daqueles meninos e meninas, o Congado não seria somente o desconhecido, mas o inadmissível.
E, no entanto…
Conexão
Escrevi uma vez, logo que uma amiga arquiteta me explicou que os sons mais graves são os mais difíceis de isolar acusticamente, porque, mesmo quando não os ouvimos, eles reverberam nas paredes, no chão, no teto, no corpo: amores graves também são assim. Quando um tambor ressoa — reverberando cultura, resistência, liberdade —, o que vibra é o peito. Naquela tarde de segunda-feira, bem como por outras quatro tardes que se seguiram ao logo de duas semanas, eu ouvi; eles sentiram.
A ideia foi proposta pela psicóloga Raphaela Santos, coordenadora do projeto Jovem 3.0, desenvolvido na Escola Padre Wilson por meio de uma iniciativa da Nexa Resources S.A. — empresa metalúrgica e siderúrgica com sede em Igrejinha —, em parceria técnica com o Instituto Votorantim e a ONG Instituto Crescer para a Cidadania. Segundo Raphaela, colaboradora da ONG, o projeto tem como objetivo desenvolver a liderança e o protagonismo juvenil.
Raphaela já assistira antes apresentações do grupo de tambor mineiro Ingoma e, atualmente, é aluna da oficina ministrada pelo músico, compositor e arranjador Lucas Soares — o professor que, naquele primeiro encontro, viu-se escrutinado pelo olhar cismado de mais de uma dezena de adolescentes. Por isso, para o primeiro módulo deste segundo ano do projeto, a psicóloga pensou que uma espécie de iniciação ao tambor poderia atender a busca pelo entrosamento e o estímulo à autoconfiança dos estudantes.
Em retrospecto, a iniciativa parece inusitada, beirando a ironia. O conceito de 3.0 surgiu para nomear a terceira geração da Internet, que prevê uma organização dos conteúdos on-line de forma semântica, com sites e aplicativos mais inteligentes, bem como personalização e publicidade baseadas nas pesquisas e no comportamento dos usuários na rede. Essa até pode ser uma realidade da juventude, mas não de maneira uniforme. A despeito de terem acesso a redes sociais por seus celulares, por exemplo, os adolescentes participantes do projeto em Igrejinha, de acordo com Raphaela, em sua maioria, sequer possuem computadores próprios em casa.
Não é esse, contudo, exatamente o principal paradoxo. Na verdade, encontra-se aqui uma outra questão. Por que, afinal, incluir uma experiência de tambor, de uma cultura afromineira secular e ancestral, num projeto que visa a inserir a juventude na era da conexão? Alguns podem pensar se tratar, de fato, de um contrassenso, mas é aí que talvez esteja o que essa vivência tenha tido de mais especial: a compreensão de que estar conectado também implica fazê-lo com suas raízes, seu passado, sua história. E com seu semelhante.
Pode parecer estranho — e deveria ser —, mas nenhuma dessas coisas está subentendida no processo educacional e, se estivesse, talvez o País é que não estivesse na situação em que se encontra. A maioria dos adolescente que compareceram à Escola Municipal Padre Wilson naquela tarde e dos que àquele grupo foram se somando nos quatro encontros seguintes é negra. Mesmo assim, nenhum deles sabia que os toques que aprenderam no transcorrer daquelas horas — Marcha Grave e Moçambique Serra Acima, típicos do Congado mineiro, e Ijexá, ritmo afrobrasileiro bastante tocado também em outros estados do Brasil — são uma herança sua. Uma herança tão sua quanto o rap que cantaram em coro, no penúltimo dia, sorriso nos rostos, enquanto um deles se aventurava pelas cordas do violão emprestado por Lucas.
Esse momento não foi aleatório nem gratuito, mas uma construção que requereu uma série de atividades naquelas tardes, da primeira apresentação, em roda, de seus nomes, acompanhados de um gesto e um som — exercício lúdico, mas também mnemônico, para o qual foi preciso romper uma dupla barreira: a da recordação e, sobretudo, a da vergonha — até ações corporais e sonoras, algumas das quais inspiradas no Teatro do Oprimido de Augusto Boal, buscando concentração, observação, confiança — em si e no outro —, capacidade de trabalho coletivo.
No primeiro dia, aprendemos, em conjunto, que Milleni ficava tímida sempre que repetíamos seu nome e o gesto de bater com as mãos abertas nas coxas que ela usou para se apresentar; ou que Pablo sorria sem graça, mas também divertido, a cada vez que o professor imitava seu jeito de tombar e balançar a cabeça, algo que a princípio se situara entre a displicência e o acanhamento, mas que acabou se tornando parte do gesto, escolhido por ele, de bater uma única e solitária palma.
Quatro encontros depois já sabíamos também que Kezia era boa em revezar com Pablo o violão; ou que Sara, embora tocasse com feição séria, parecera se encantar com a letra da canção “A lua girou”, de Milton Nascimento, que eles ensaiaram no toque da Marcha Grave; ou que a dupla Niara e Bárbara sabia cantar todos os raps puxados pelos aprendizes de violonista; ou que Elias gostava de samba e tocava com um sorriso contagiante; ou que Wesley entoava com vontade, na cadência das batidas do Moçambique Serra Acima, os versos “O meu pai é brasileiro/ Minha mãe é brasileira/ Meu Deus, o que é que eu sou?/Eu sou brasileiro”. Reconhecimento.
Brasileiros é o que esses meninos e meninas são e também o que reivindicam ser, ainda que as desigualdades educacionais, longe de serem superadas como estabeleceu, entre suas diretrizes e metas, o Plano Nacional de Educação (PNE), estejam sendo aprofundadas pelo atual desmanche das políticas voltadas para o fortalecimento da educação pública, gratuita e de qualidade socialmente referenciada. Eles o reivindicam até mesmo sem saber; ou mesmo que, bastante possivelmente, alguns de seus pais tenham votado no atual governo. Atribuir esse fenômeno somente a uma suposta má-fé é desconhecer uma realidade muito mais complexa.
Rompendo os grilhões
Em outubro passado, há quase um ano, quando escrevi o artigo “Rompendo os grilhões: por uma educação pela memória e pela liberdade”, publicado no site da CartaCapital, expliquei que o grupo de tambor mineiro Ingoma, embora seja, há mais de dez anos, um grupo artístico e de pesquisa cultural, que se inspira na tradição do Congado e a mistura com o cancioneiro popular brasileiro, não faz isso sem um profundo respeito aos detentores reais dessa cultura, nem sem um compromisso manifesto com a educação.
É por isso que um dos braços do trabalho do grupo, intensificado no último ano, tem sido o Ingoma nas Escolas. Porque o objeto de pesquisa do grupo é uma expressão cultural de genuína resistência. Porque é de resistência que tem sido feita a educação. E porque é preciso resistir junto àqueles que são os legítimos herdeiros dessa manifestação, ainda que, muitas vezes, tenham sido privados de conhecê-la.
Em artigo publicado no jornal Extra Classe, editado pelo Sindicato dos Professores do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), o professor e pesquisador Gabriel Grabowski, filósofo e doutor em Educação, observou que “Os estudantes de maio são a esperança possível”. No texto, ele apontava que, em maio de 1968, “jovens estudantes tremeram o mundo” e que, exatamente 51 anos depois, nos dias 15 e 30 de maio de 2019, “os estudantes do Brasil saíram às ruas e acuaram o governo autoritário do Bolsonaro e a gestão truculenta do MEC”. “Esta multidão de jovens, conscientes de sua força social e política, não somente contrapõe-se aos cortes de recursos para a educação, mas lutam pela democracia, por uma educação pública de qualidade, por uma universidade autônoma e por ciência livre”, escreveu.
Concordei com Grabowski na ocasião e, apesar de novos ataques, como o Future-se, terem se sucedido, ainda concordo. Os estudantes de maio também são minha esperança, assim como os de junho, de julho, de agosto… Mas não só os que foram às ruas nos dias 15 e 30 de maio — e ao lado dos quais o Ingoma também esteve com seus tambores — ou que se propuseram a inundar o País no 13 de agosto numa tsunami da educação.
Minha esperança também está nestes estudantes de maio, estes que, numa tarde de sexta-feira, tocaram tambor mineiro para as crianças e professores de sua escola pública da periferia. Em seu olhar, cinco encontros depois daquele primeiro, a desconfiança foi substituída pelo orgulho. Em seus rostos, o desdém virou sorriso. Naquela tarde, Lucas, Raphaela, os integrantes do Ingoma e os alunos das oficinas de tambor ministradas pelo grupo que foram até lá tocar com eles puderam escutar o som dos tambores sair de suas mãos, de seus braços, de seus olhos. Eles ouviram; eu senti.
*Táscia Souza é jornalista da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (Contee), doutora em Estudos Literários pela Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), escritora no projeto Hupokhondría e integrante do grupo de tambor mineiro Ingoma
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