J. Carlos de Assis*
Imagine uma elevatória de água numa grande cidade. A água que desce da elevatória para abastecimento dos bairros flui por uma canalização central com capacidade suficiente para o atendimento de toda a rede ligada. Esse sistema está obviamente integrado. Elevatória é uma coisa, canalização central é outra coisa e distribuição final é uma terceira coisa. Mas nenhum desses segmentos funciona bem isoladamente. É um conjunto que só funciona com eficiência se for de forma integrada, dentro de uma mesma empresa.
Assim funcionava a Petrobrás, um grande conglomerado integrado do poço de petróleo à bomba de gasolina, e que, ao longo de mais de meio século, se tornou uma das maiores petrolíferas integradas do mundo. Funcionava integrada; mas não funciona mais. Na área do gás, a atual administração dirigida pelo neófito na área Roberto Castello Branco separou da central de produção o sistema de transporte do gás no atacado (TAG e NTS) , cortando o vínculo também com a distribuição final no varejo (BR Distribuidora).
Vejamos o que Castello Branco terá de explicar na reunião da Comissão de Infra-Estrutura do Senado marcada para esta quarta-feira. A TAG, transportadora de gás do Norte/Nordeste, é uma empresa que apresenta receitas elevadas e garantidas. No ano de 2018, sua receita de serviços foi de R$ 4,943 bilhões, 4,5 vezes maior que o custo desses serviços, de apenas R$ 1,098 bilhão. Houve aparentemente uma falha clara da agência reguladora, a ANP, em sua função de fiscalizar serviços monopolizados.
Se não fosse cooptada pelas petrolíferas estrangeiras, a ANP teria obrigado a TAP a reduzir seus preços beneficiando os consumidores do Norte e Nordeste. Por que não o fez? Aparentemente, para atrair compradores para a empresa que já estava na fila de privatização. Como qualquer monopólio natural, há necessidade de uma regulação das tarifas de transporte da TAG pela ANP. Uma regulação típica, a partir de custos, reduziria drasticamente as tarifas cobradas, desde que a TAG permanecesse como subsidiária integral da Petrobrás.
O preço de venda da TAG foi de US$ 8,6 bilhões. Naturalmente os compradores quererão reaver esse investimento no menor prazo possível. O custo correspondente vai cair nos bolsos do consumidor. É uma clara desvantagem em comparação à situação anterior de empresa integrada à Petrobrás porque, nesse caso, o investimento já estaria praticamente amortizado. Dessa forma, na prática, a privatização da TAG elimina qualquer possibilidade técnica de significativa redução de tarifa de transporte do gás para o Norte/Nordeste.
O mesmo raciocínio se aplica à NTS, a transportadora de gás para a região Sul/Sudeste que era subsidiária integral da Petrobrás. O que se deve ter em mente é que estão se criando, em torno da Petrobrás, monopólios territoriais sem efetivo controle pelo setor público, já que a ANT, como visto acima, se omite em sua função reguladora. O próximo passo anunciado é a privatização de oito refinarias da Petrobrás, mais um elo na cadeia entre produção e a bomba de gasolina/diesel, quebrando a linha produtiva da empresa em detrimento do consumidor.
O fato é que a política privatista da atual gestão da Petrobrás, justificada apenas por razões ideológicas fundadas no neoliberalismo radical, está estabelecendo condições para a criação de um paraíso capitalista sem risco no Brasil. Tornamo-nos presa fácil das petrolíferas estrangeiras que estão abocanhando o pré-sal e escapando inclusive de tributação justa de suas operações. O motivo que se dá a esse tipo de subserviência é a promoção da liberdade de mercado, inclusive em setor, como a indústria do petróleo, de claro interesse estratégico para o país, e constituído em grande parte por monopólios naturais, públicos ou privados.
Quando se examinam as demonstrações financeiras da Petrobrás verifica-se que, de 2015 a 2018, a área de abastecimento (refino) apresentou um lucro de R$ 30,2 bilhões. Já o lucro da área de exploração e produção foi de R$ 7,6 bilhões. Como se explica que o advogado Roberto Castello Branco, levado à presidência da empresa por afinidade ideológica neoliberal com o ministro da Economia, pode ousar dizer que o refino destrói valor?
Na verdade, da década de 1950 a 1980, a Petrobrás foi, principalmente, uma empresa de refino. Construiu praticamente todo o parque nacional de refinarias. O custo médio de refino da Petrobrás é de apenas US$ 2,5 por barril. A empresa é eficientíssima nesse campo. Portanto, quais razões ocultas tem o presidente da Petrobrás para planejar a privatização de oito refinarias da Petrobrás, se não a alusão vaga a uma suposta maior eficiência do mercado livre num campo de monopólios territoriais?
A exploração e produção de petróleo é uma atividade extrativa, cujo lucro depende do preço do produto. O refino é uma atividade industrial sempre lucrativa. É por isso que todas as grandes empresas petrolíferas, estatais ou privadas, são integradas. A capacidade de refino da maior petrolífera privada, ExxonMobil, é muito maior que sua capacidade de produção de petróleo. A palavra de ordem na indústria petrolífera mundial é diversificação. Como pode o presidente da Petrobrás ter a ousadia de defender a concentração das atividades da Petrobrás em exploração e produção? Para onde irá sua capacidade de investimento a partir do lucro, ela que chegou a representar 70% da capacidade de investimento no país em um ano?
As grandes empresas petrolíferas são integradas do poço ao posto. Nenhuma delas abre mão da área de distribuição. As empresas são conhecidas pelas suas marcas nos postos. A Petrobrás é extremamente eficiente na produção, no refino e na distribuição. A BR apresenta lucros sucessivos anualmente. Em2018, o lucro da BR foi de R$ 3,2 bilhões. Como Castello Branco pode afirmar que a Petrobrás não tem especialização em distribuição? Qual a justificação para a privatização da BR, exceto o favorecimento aberto a estrangeiros, num verdadeiro crime de lesa-pátria?
*Jornalista, economista e professor