Por Sergio Rodas, no Conjur
A Constituição alemã de Weimar completa 100 anos em 11 de agosto. A norma foi pioneira na garantia de direitos fundamentais e sociais, além de atribuir ao Estado o papel de proteger os cidadãos.
No entanto, a Carta não tornou tais direitos exigíveis em juízo. Dessa forma, muitas de suas garantias foram desrespeitadas – especialmente após Adolf Hitler editar a Lei Habilitante em 1933. A norma permitiu que o governo da Alemanha suprimisse direitos, possibilitando a criação da ditadura nazista.
Tempos agitados
No fim de 1918, após quatro anos de combate na Primeira Guerra Mundial, a Tríplice Aliança (Alemanha, Áustria-Hungria, Itália e outros) estava em vias de ser definitivamente derrotada pela Tríplice Entente (França, Reino Unido, Rússia, EUA, entre outros).
Indignados com a guerra e crise econômica dela decorrente e inspirados pela Revolução Russa, social-democratas e comunistas promoveram levantes contra o Império Alemão, chegando a controlar algumas regiões.
Informado de que os militares não lutariam por sua manutenção no poder, o imperador Guilherme II abdicou do trono em 9 de novembro, e foi proclamada a república – tanto por social-democratas quanto por comunistas. Dois dias depois, a Alemanha assinou um armistício com a Tríplice Entente. A paz seria definitivamente formalizada com o Tratado de Versalhes, firmado em junho de 1919 e ratificado pela Liga das Nações sete meses depois.
Com a renúncia do príncipe Max Von Baden, o presidente do Partido Social-Democrata (SPD), Friedrich Ebert, virou chanceler. Ele instalou um governo provisório, com membros do SPD e do Partido Social-Democrata Independente (USPD). Não havia consenso de o Estado alemão deveria ser socialista ou uma democracia parlamentarista. Em dezembro, foi decidido que a Alemanha seria social-democrata. Isso levou o USPD a deixar o governo. A Liga Spartacus, liderada por Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht, abandonou o USPD e formou o Partido Comunista da Alemanha (KPD).
As eleições para a Assembleia Nacional Constituinte estavam marcadas para de 19 de janeiro de 1919. Antes disso, porém, o KPD promoveu grandes manifestações em Berlim contra o governo de Ebert. Acusando os manifestantes de planejar uma greve geral e uma revolução comunista, o governo, com a ajuda de militares e paramilitares (freikorps), esmagou o movimento e assassinou Rosa Luxemburgo e Karl Liebknecht. Essas execuções marcaram a ruptura definitiva entre comunistas e social-democratas.
Assembleia constituinte
Por causa do clima político instável, a Assembleia Nacional Constituinte ficou na cidade de Weimar, e não em Berlim. Friedrich Ebert foi escolhido presidente, e Hugo Preuss, constitucionalista e integrante do Partido Democrático Alemão (DDP), foi nomeado secretário do Interior, ficando responsável por redigir o anteprojeto da Constituição.
Hugo Preuss era um social-democrata, defensor da soberania dos órgãos locais e comunais, afirma o colunista da ConJur Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy. Ele defendia o fim do Estado autoritário, em prol de um Estado republicano. Preuss era entusiasta de um modelo de auto-organização de uma cidadania livre, cujas diretrizes políticas seriam definidas por comandos locais.
A Constituição de Weimar é um desdobramento da obra de autores de Direito Público como Max Weber, Hans Kelsen, Carl Schmitt e Erich Kauffmann, entre outros, afirmam Godoy e o também colunista da ConJur Ingo Sarlet. Mas a Carta não é só fruto do pensamento de juristas, mas também de intelectuais como Thomas e Heinrich Mann, Franz Kafka, Fritz Lang, Paul Klee, Stefan Zweig e Sigmund Freud.
Inovações da Constituição
Promulgada em 11 de agosto de 1919, a Constituição de Weimar foi uma das primeiras do mundo a prever direitos sociais, que incluíam normas de proteção ao trabalhador e o direito à educação. Além disso, a Carta também possuía um extenso rol de direitos fundamentais, que asseguravam a igualdade, a liberdade de expressão e religião e a proteção de minorias.
O ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes ressalta a influência do documento. “É a primeira constituição democrática alemã. É pioneira tanto no estabelecimento dos direitos fundamentais como dos sociais. Vai ter influencia em várias constituições a partir de então, como da do Brasil de 1934, que será a primeira que irá tratar dos direitos sociais.”
O jurista e colunista da ConJur Lenio Streck afirma que a Constituição de Weimar passou a prever uma finalidade para o Estado, não se limitando a apenas dizer “o que é” ou “quais são os limites” do Estado.
“Ela inaugura, junto com a do México, de 1917, aquilo que se chamou de constitucionalismo social, colocando o Estado como promovedor de políticas públicas. Do velho Estado regulador passamos para o Estado promovedor. Com Hermann Heller, podemos dizer que ela inaugura a noção de Constituição como norma. Daí Heller falar em força normativa da Constituição, mencionando, em sua ‘Teoria do Estado’, a ‘Constituição formada por normas’, destacando sua ‘função diretora e preceptiva’”, diz Lenio.
Dessa maneira, o Estado passou a não apenas ter que assegurar a liberdade dos cidadãos, mas também a dever proteger os indivíduos, avalia o jurista. “Com Weimar, o Estado é chamado a proteger o cidadão, inaugurando o que poderíamos chamar de ‘função social do Estado contemporâneo’. Eis o grande legado de Weimar. Mais que garantir – como no Estado projetado a partir das revoluções liberais – a liberdade dos cidadãos, primando pela garantia da livre iniciativa, sobretudo, nas relações de mercado, a Constituição de Weimar projeta, também, a proteção do indivíduo. Com ela, a propriedade obriga: eis um marco para superar a velha noção da propriedade como mercadoria.
A Constituição de Weimar marca o início da ideia de um Estado Social de Direito, afirma a advogada Karina Nunes Fritz, doutora pela Humboldt Universität e ex-pesquisadora do Tribunal Constitucional alemão e do Instituto Max-Planck. “O catalogo de direitos fundamentais da Constituição de Weimar espelha, na verdade, um compromisso entre as forças político-ideológicas da época, que se dividiam entre tendências liberais, social-democratas, socialistas etc. Ele é, por isso, frequentemente entendido como um ‘compromisso de classes’.
Contudo, os direitos fundamentais tinham caráter apenas programático, não sendo diretamente vinculantes e exigíveis em juízo. Umas das dificuldades da concretização dessas garantias era a amplitude de suas formulações, conta Karina. Como exemplo, ela cita o artigo 167. O dispositivo determinava que o Estado iria se empenhar por regular as relações dos trabalhadores a fim de alcançar uma medida mínima de direitos sociais para toda a classe trabalhadora da humanidade.
“A Constituição de Weimar previu direitos sociais, não os garantiu, pelo menos não ao nível de uma efetividade decorrente da afirmação da supremacia da constituição, mas sim, de uma legislação social que tinha sua origem já no final do século XIX e que atravessou combalida e esvaziada de efetividade pela aguda crise econômica, o período de vigência da Constituição de 1919”, destacam Arnaldo Godoy e Ingo Sarlet.
Isso mudou com a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, ressaltam os juristas. “Ela não previu direitos sociais propriamente ditos, mas um catálogo reforçado de direitos de liberdade e garantias processuais e uma cláusula geral de socialidade a ser concretizada mediante políticas públicas.”
O artigo 1º, III, da norma de 1949, estabelece que os direitos têm eficácia direta e imediatas, e são exigíveis no Judiciário, vinculando inclusive o legislador. Criado dois anos depois, o Tribunal Constitucional Federal destina-se a assegurar a dignidade humana e os direitos fundamentais, como Ingo Sarlet já explicou em sua coluna.