A Argentina se debruça à beira do abismo. Com o peso em queda livre, as Bolsas no vermelho e um risco-país que chegou a transbordar os mil pontos, a jornada da quinta-feira (25) demonstrou que a crise de confiança se agrava. A crescente incerteza política, com o presidente Mauricio Macri caindo nas pesquisas e com a ex-presidenta Cristina Kirchner cada vez mais bem situada, soma-se à incerteza econômica: pesam grandes dúvidas sobre a capacidade governamental de controlar a inflação.
O Banco Central teve que elevar para 70% os juros das LELIQs (letras de liquidez) a fim de proteger a moeda local, que despenca semana após semana. Os mercados financeiros haviam aberto com cifras muito alarmantes. O dólar era negociado a mais de 47 pesos, as ações de bancos e empresas de energia caíam mais de 10 pontos em Wall Street, e o risco-país (o ágio que os investidores cobram para emprestar dinheiro) superava os mil pontos, ou seja, 10%. Para se ter uma ideia da desconfiança internacional em relação à Argentina, convém salientar que nenhum outro país da região, exceto a Venezuela, paga um risco-país superior a 250 pontos.
As coisas se acalmaram um pouco no final da jornada. O dólar ficou em 46,30 pesos (45 no mercado varejista), e o risco-país em 950 pontos. Mas todos os sinais eram claros. Reina a impressão de que Macri está perdendo o controle da situação e que seu “pacto entre cavalheiros” com várias empresas para congelar os preços de 60 produtos de primeira necessidade era uma atadura pequena demais para conter a hemorragia inflacionária. Estima-se que em abril os preços voltarão a aumentar mais de 4% e que os combustíveis, atrelados ao dólar, subirão de forma iminente por causa da desvalorização do peso.
Macri foi à Casa Rosada, e seu chefe de gabinete, Marcos Peña, se reuniu com vários ministros. Não houve declarações. O ambiente era “pesado”, segundo uma testemunha presencial, e os rostos refletiam a tensão do momento. Um porta-voz de Peña admitiu as dificuldades, mas salientou que as eleições de outubro e novembro ainda estão distantes.
A chamada “Opção V” irrompeu no debate político. Consistiria em Macri abrir mão de disputar a reeleição, lançando em seu lugar a candidatura de María Eugenia Vidal, a atual governadora de Buenos Aires. O PRO (Proposta Republicana), partido de Macri, se apressou em reafirmar que o atual presidente será candidato, e os porta-vozes de Vidal insistiram em que a governadora, de 45 anos, não tinha intenção de aspirar à Casa Rosada. Mas os rumores não cederam. O fato de Vidal apresentar um plano de contenção de preços limitado à província que governa — e que, diferentemente do que fez Macri na passada semana com seu “pacto entre cavalheiros”, o tenha lançado pessoalmente, sem delegar isso a um grupo de ministros — contribuiu para reforçar sua visibilidade.
A Casa Rosada diz que o motivo das turbulências econômicas e políticas tem nome e sobrenomes: Cristina Kirchner. A ex-presidenta continua sem dizer uma palavra sobre se será ou não candidata. Restam poucas dúvidas, entretanto. Kirchner já age em modo eleitoral, e as pesquisas, agora, a dão como vencedora diante de Macri. Os mercados financeiros e a metade do país que não simpatiza com o peronismo estão alarmados com a possibilidade de um retorno da ex-presidenta. Dá-se como certo que, se voltar à chefia do Estado, renegaria o acordo com o Fundo Monetário Internacional (que entre junho e setembro passados emprestou 57 bilhões de dólares) e suspenderia o pagamento da dívida.
O peso da dívida
Mas a possibilidade de um default argentino existe, com Kirchner ou sem ela. Cada vez mais economistas expressam sua opinião de que os 34 bilhões de dólares a serem devolvidos no ano que vem representam uma carga excessiva para uma economia que continua em recessão, e que o aumento da dívida em termos reais (pela desvalorização do peso) exigiria cortes orçamentários quase insuportáveis. A dívida pública argentina supera 90% do PIB, e quase toda ela está expressa em dólares.
Na quarta-feira, Macri voltou a culpar Kirchner. “O mundo duvida, porque acha que os argentinos querem voltar atrás; isso mete medo no mundo, então aumenta o risco-país, e são tomadas posições defensivas. Mas estão equivocados, as dúvidas são infundadas: os argentinos não vão voltar atrás, entendemos que não existe mágica e que o messianismo nos leva a destruir a sociedade”, disse. O presidente salientou que o FMI concedeu à Argentina o maior empréstimo de sua história porque tinha fé nas políticas liberais que seu governo desenvolvia. “Temos que manter a calma”, disse, eludindo o fato de que foi sua política neoliberal, ditada pelas forças do mercado, que condenou o país ao abismo.
Na verdade, quem parece mais tranquila é Kirchner. Em 9 de maio ela apresentará na Feira do Livro uma autobiografia intitulada Sinceramente, cuja enorme tiragem inicial (60.000 exemplares) já está esgotada antes de chegar às lojas. A publicação do livro, às vésperas da corrida eleitoral, foi interpretada como sinal inequívoco de que Kirchner tomou a decisão de lançar sua candidatura. Seus inimigos argumentam que a ex-presidenta precisa recuperar o poder para se blindar das numerosas ações judiciais por corrupção; seus seguidores têm saudades da relativa prosperidade dos anos de Néstor e Cristina Kirchner, e clamam por seu retorno. Ela, por enquanto, se cala. Limita-se a difundir mensagens sobre a necessidade de “recuperar a ordem” frente ao “caos” de Mauricio Macri. A expectativa pela apresentação de seu livro, e pelo que possa dizer durante esse ato, é enorme.
Cristina Kirchner desfruta de uma vantagem paradoxal. Quanto mais provável se torna sua volta ao poder, mais alarmados ficam os mercados financeiros, e mais os indicadores econômicos pioram. O que por sua vez complica a situação de Macri. Em geral, a sociedade argentina está cada vez mais decepcionada com a gestão dele, e isso se reflete em todas as pesquisas. O homem que prometeu resolver de uma vez por todas os males endêmicos da economia (inflação e desvalorização, pobreza, corrupção) enfrenta no final de seu mandato uma crise devastadora, em grande medida por causa dos seus próprios erros.
Lawfare
A ascensão de Cristina Kirchner nas pesquisas coincide com novos problemas judiciais para ela. O juiz Claudio Bonadio, encarregado do chamado “processo dos cadernos”, ampliou nesta quarta-feira (24) a denúncia contra a ex-presidenta e pediu pela sexta vez sua prisão preventiva por suposta corrupção. Kirchner é acusada de liderar uma associação ilícita montada no ministério de Infraestrutura, responsável pelas obras públicas, a fim de arrecadar dinheiro ilegal de empresas beneficiadas nos contratos. A prisão “se tornará efetiva quando o Senado da Nação aprovar a perda do seu foro privilegiado, ou, quando o foro privilegiado cessar”, escreveu o juiz Bonadio em sua resolução.
O magistrado considerou “inverossímil” a alegação da hoje senadora de que desconhecia as manobras de seus subordinados. A decisão contra a ex-presidenta soma novas acusações ao processo graças às delações de testemunhas que, na qualidade de arrependidas, contaram ao juiz que parte do dinheiro arrecadado ia parar no apartamento que Cristina Kirchner e seu marido, o ex-presidente Néstor Kirchner, falecido em 2010, mantinham em bairro rico de Buenos Aires.
Trata-se de uma manobra conhecida como lawfare, que consiste na utilização da Justiça para a consecução de objetivos políticos, a mesma que foi usada no Brasil para condenar, prender injustamente e tirar Lula da corrida presidencial de 2018, o que abriu caminho à vitória de Bolsonaro.
Fonte: El País