A cultura marítima que circula nas veias dos norte-americanos recomenda que se realize uma proclamação presidencial todos os anos, no Dia Nacional da Marinha Mercante dos EUA. Nas proximidades de 22 de maio, o presidente solicita aos seus concidadãos que observem o dia de homenagem, exibindo a bandeira do país em suas casas e realizando o embandeiramento dos navios. Não raro, a depender da visão governamental, a proclamação do presidente vai mais além. Aproveita-se a ocasião para que seja ressaltada a importância dos trabalhadores marítimos dos Estados Unidos como o “quarto braço de defesa” daquela nação. Procura-se, com a celebração anual, reforçar a proteção de ideais que guiaram os EUA por mais de dois séculos: a consciência de que os marítimos nacionais facilitam o transporte e o comércio de produtos norte-americanos e de que eles colocam suas vidas em risco em tempos de guerra. Por tudo isso, os Marinheiros Mercantes têm seu papel insubstituível na formação da narrativa daquele país, fato estrategicamente comemorado e devidamente reconhecido, para que jamais caia no esquecimento.
Jones Act
Sem dúvida alguma, a expressão mais notável da relevância estratégica que é dedicada à sua Marinha Mercante encontra-se registrada na lei quase centenária que protege a atividade de cabotagem, assim como a navegação em águas interiores do país. Trata-se da Jones Act, lei de autoria do senador Wesley Jones promulgada em 1920, que regula o comércio marítimo em águas territoriais norte-americanas. Criada com o objetivo inicial de garantir a existência de uma frota representativa com capacidade de dar resposta a eventuais necessidades de defesa dos Estados Unidos, no começo do século passado, a Jones Act determina que o transporte de mercadorias entre os portos dos EUA deve ser realizado apenas por navios de bandeira norte-americana. Além disso, as embarcações precisam ser de propriedade de cidadãos norte-americanos, construídas nos Estados Unidos, com aço ali produzido, e tripuladas por marítimos nacionais ou que tenham residência permanente no país. Isenções temporárias têm sido permitidas em casos que envolvam necessidades pontuais de defesa ou outras emergências, como desastres naturais.
Tal legislação tem efetivamente garantido aos Estados Unidos a obtenção e o controle de recursos de interesse militar, mas não apenas isso. Ao longo dos anos, os estaleiros que atendem às indústrias militar e marítima mantiveram carteiras bastante expressivas e condições para construir e reparar embarcações, às quais também são incorporadas inovações tecnológicas. E existe outro aspecto que exige menção: olhos e ouvidos de marítimos nacionais sempre observam o que ocorre em sua cabotagem e seu offshore, o que inclui toda a extensa rede de hidrovias dos EUA, fator importante especialmente para a segurança interna de uma nação sob frequentes ameaças de terrorismo. Com um detalhe: a indústria marítima dos Estados Unidos, sob o amparo da Jones Act, assegura atualmente quase meio milhão de postos de trabalho de qualidade para norte-americanos, ajudando a movimentar uma potente economia.
No entanto, a Jones Act não repousa num mar de tranquilidade. Há muitos anos, as associações europeias de armadores lutam contra essa lei e financiam estudos que procuram destacar os custos econômicos que ela acarreta. Um exemplo foi o workshop realizado no fim de 2018 pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico, entidade que reúne 36 países desenvolvidos, no qual se concluiu que os custos de transporte nos EUA são duas vezes maiores em navios regidos pela Jones Act. Resultados preliminares de um desses estudos, apresentado no mesmo workshop, procuraram demonstrar os potenciais benefícios que os Estados Unidos alcançariam com o fim da Jones Act, municiando com argumentos imediatistas de cunho econômico o discurso daqueles que desejam acabar com a lei de proteção da Marinha Mercante dos EUA.
Não resta dúvida que devido à exigência de tripulação norte-americana nas embarcações, os custos operacionais de um navio daquele país sejam 2,7 vezes superiores aos de um navio tripulado por filipinos. Tampouco, que o preço de um navio construído nos EUA seja de duas a quatro vezes mais alto que o de outro fabricado em estaleiros da Ásia, por exemplo. No entanto, o que os armadores internacionais não têm interesse algum em expor nos estudos que financiam é o fato de que não haveria qualquer benefício garantido em favor dos Estados Unidos, no longo prazo, caso houvesse uma revogação da lei de proteção. Assim, não é possível estimar os impactos e riscos a que estariam sujeitos a segurança interna, o abastecimento e o efetivo suporte ao desenvolvimento econômico.
Essa proteção de mercado pode não sair barata para os EUA, mas atende efetivamente aos interesses estratégicos do país. Defende um importante segmento da indústria nacional, da mesma forma que protege os trabalhadores locais, numa atividade que é conhecida mundialmente por explorar os trabalhadores marítimos. Em grande medida, portanto, a Jones Act também é uma lei que garante direitos trabalhistas aos marítimos dos Estados Unidos, evitando que recebam o tratamento dispensado aos marítimos de países de baixo custo.
Apesar das reiteradas investidas contra a Jones Act, a lei vai se aproximando de seu centenário ainda viva, contribuindo de forma efetiva para a soberania da nação. Trabalhadores e empresas cumprem os regulamentos de segurança, e os empregadores são obrigados a aderir às leis rigorosas do país. Todos também têm de pagar impostos norte-americanos, o que contribui para movimentar as cadeias internas de produção da maior economia do mundo. Aliado a isso, ao proteger e subsidiar a construção nacional das embarcações, bem como a navegação em suas águas com empresas nativas, os EUA evitam transferir para outros países recursos bilionários, o que acaba levando também a uma movimentação mais intensa de bens e serviços, favorecendo ainda mais o desempenho econômico de uma nação cuja população passa dos 325 milhões de cidadãos.
Motivos legítimos não faltam para que as intenções dos armadores internacionais contrários à Jones Act sejam duramente criticadas nos Estados Unidos. Tal medida representaria, potencialmente, uma série de ameaças e prejuízos ao país, quanto à segurança nacional e à perda avassaladora de bons empregos nas indústrias marítima e de construção naval. Além das perdas resultantes dos postos de trabalho que seriam eliminados a bordo, os estaleiros de construção e reparo deixariam de investir em operações eficientes em termos financeiros, e com isso seriam engolidos por concorrentes do exterior.
Tal cenário, caso se efetivasse, já seria desolador. Todavia, prognósticos apontam que não ficaria só nisso. Os contratos de longo prazo no transporte marítimo cessariam e, deste modo, a economia de escala possibilitada pela previsibilidade desses contratos também desapareceria. A atual frota norte-americana, cuja dimensão foi consolidada graças à Jones Act, começaria a ser corroída. E, a partir daí, os danos se multiplicariam, inclusive com a concentração cada vez maior do transporte marítimo nas mãos dos poucos grupos que dominam o mercado internacional.
Os fatos e considerações registrados nos parágrafos anteriores devem servir, particularmente, para nos ajudar a compreender o tamanho dos desafios que a Marinha Mercante do Brasil vem enfrentando. Os armadores que se esforçam para derrubar a Jones Act nos Estados Unidos operam navios em escala global e não limitam à cabotagem norte-americana suas ações em defesa dos interesses do capital e dos investidores. São os mesmos grupos que fazem lobby no Congresso Nacional do Brasil, no Parlamento da Austrália, no Canadá e onde quer que possam garimpar novas oportunidades de acrescentar lucro ao seu portfólio, atuando no transporte marítimo com navios tripulados por trabalhadores de países de baixo custo.
“Salta aos olhos o fato de que o Brasil, assim como os EUA, possui interesses nacionais que podem ser mais efetivamente resguardados pela existência de uma frota de navios mercantes de bandeira própria, sobre os quais o Estado possa exercer efetivo controle, garantindo que sejam tripulados por marítimos brasileiros.”
No Brasil, nunca é demais lembrar: apesar dos esforços da armação internacional, contamos ainda com importante legislação garantindo proteção à indústria marítima nacional e aos empregos de marítimos nacionais que trabalham em águas brasileiras, representada pelas Leis 9432/97 e 9537/97 e pela RN-06 do CNIg, instrumentos legais que tiveram intensa e efetiva participação do SINDMAR em sua elaboração. Nossa proteção à Marinha Mercante, embora não tão abrangente quanto a norte-americana, desagrada imensamente a armação internacional. No entanto, salta aos olhos o fato de que o Brasil possui interesses nacionais que podem ser mais efetivamente resguardados pela existência de uma frota de navios mercantes de bandeira própria, sobre os quais o Estado possa exercer efetivo controle, garantindo que sejam tripulados por marítimos brasileiros.
Ao longo da história tivemos exemplos de governos que estimularam políticas de depredação de nossa capacidade marítima. Também houve governos que trataram a Marinha Mercante como setor estratégico, buscando alcançar desenvolvimento, segurança interna e abastecimento do mercado nacional com mercadorias e insumos locais, reduzindo a dependência e a vulnerabilidade de nossa nação a fatores externos. Não há dúvidas de que a cabotagem brasileira continuará sendo objeto de desejo de armadores internacionais. Tais investidas poderão encontrar dificuldades ou facilidades em nosso país, a depender do olhar que o governo federal vai dedicar à nossa Marinha Mercante.
O SINDMAR seguirá firme atuando em sua missão de defender os interesses dos Oficiais e dos Eletricistas mercantes brasileiros, sempre pronto a oferecer sua visão, com informações e esclarecimentos que possibilitem melhor compreensão das autoridades acerca das particularidades do setor em que temos atuado ao longo de décadas, e das evidentes vantagens para o Brasil em contar com navios arvorando sua própria bandeira, tripulados por marítimos brasileiros.
Carlos Augusto Müller
Diretor de Relações Internacionais do SINDMAR
Fonte: sindmar.org.br