Uma negra acorrentada num fórum no Brasil, hoje, sendo essa advogada, é o retrato da normatização da escrotidão sobre uma etnia e nos põe a todos na mira do atraso, nos atola na triste conclusão de que a escravidão não acabou. Valéria não infringiu a lei, não é bandida e foi detida no trabalho ao defender sua cliente, a negra ré. Vemos a face de sua dignidade, a certeza de estar legalmente correta em pleno exercício da profissão e, para nosso enjoo e espanto, a indiferença, a omissão e a anuência de seus colegas com esta barbárie que é o racismo contemporâneo brasileiro (Ó triste frase, ainda existe?).
Escrevo em pensamento e caminho por dez minutos na Copacabana que me expõe doze moradores de rua (contei). Espalhados nas calçadas, nos quarteirões do bairro que amo. Todos corpos negros, mais da metade jovens em idade escolar. Doença, desamparo, alcoolismo, crack, abandono, humilhação, fome. Todos abaixo da linha da dignidade, chafurdados no cuspe da exclusão. Passeio entre refugiados, neste campo de concentração imenso no qual o Brasil se tornou. Muitos sobreviventes deste holocausto estão nas ruas, ou nas carceragens, ou na bandidagem. E quem repara?
Todo dia se mata na favela. Vidas negras importam? A quem? Nem reconhecemos como holocausto a tragédia carnificeira que comandou o tráfico de gente pelos oceanos durante quatro séculos! Algum mecanismo aconteceu em nossas cabeças que somos um país que não se comove diante do extermínio da nossa juventude negra, mas é capaz de chorar copiosamente vendo o diário de Anne Frank. Uma dor não é maior do que a outra. Porém afirmo que, por ignorância da nossa verdadeira história, não nos comovemos com a escravização. Uma tal artimanha psicossociológica despregou da fé o tema. Uma pessoa é capaz de não permitir que sua filha se case com um negro, de sair com a sua “escravinha” vestida de branco a tiracolo aos domingos, de mantê-la na senzalinha sem janela, conhecida como dependência de empregada, de passar a vida achando que é maior do que os outros porque tem mais dinheiro, e isso não ameaçar um milímetro de sua fé! Por que discriminar, explorar, dispor do corpo negro, seja como mercadoria, assédio, feminicídio ou extermínio mesmo, não é pecado? E patrões e empregados, comendo comidas diferenciadas e separados? Por que não comemos todos na mesma mesa?
Neste momento em que tento digerir as violentas imagens da “irmã” humilhada, me agrada a ideia de que ao mesmo tempo nunca o racismo foi tão percebido. Estamos estreando esta verdade. Tem gente só percebendo agora. Melhor. Está pegando mal não ter um negro na equipe, na festinha, nas selfies. Graças às nossas lutas e aos últimos governos legítimos que nos proporcionaram ótimas políticas de inclusão, o Brasil é outro. Narrativas negras começam a ter poder em diversas plataformas e o que sempre ocorreu está chegando na mesa da Casa Grande para ser mais do que um incômodo, ser mudança de atitude. Democrata não dá. Nem há chances de cristão racista ter vida boa na eternidade, eu soube. Portanto, ainda que seja para limpar a barra diante da fúria de um justo e propagado Deus, ou seja, ainda que para salvar a própria pele, é melhor que se curem já. Tal prática nos apodrece, mina nossas possibilidades de paz. Dra. Valéria foi humilhada, algemada e não teve a defesa dos seus pares que a tudo presenciaram, omissos. Pois lhes digo: a atitude desses senhores é metáfora irmã de muitas de nossas ações. Quem me lê agora e em sua prática cotidiana não resolve o dilema torto da nossa história, está cego ao seu horror, e cada um, direta ou indiretamente, algemou Valéria ontem. Se omitiu ao não defendê-la. E continua distribuindo sua dose de injustiça como se inocente fosse. Grite, Angela Davis: “Não basta não ser racista. É pouco. É preciso ser antirracista.”
Elisa Lucinda é atriz e poeta. Foto: EBC
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