31 de agosto de 2016 é uma data que lembra uma página triste da história brasileira. Foi o dia em que o Senado concluiu a votação do processo de impeachment de Dilma Rousseff, o que resultou em seu afastamento definitivo da Presidência e na consolidação do ilegítimo Michel Temer no cargo. Este já assumira como interino em 12 de maio.
Consumou-se, então, um golpe de Estado modelo século 21, que transcorreu sem derramamento de sangue, sem tanques na rua e se serviu de artifícios jurídicos, guerra ideológica liderada pela Rede Globo, tecnologia de espionagem americana, manifestações orientadas pela Fiesp e um Parlamento notoriamente conservador e venal.
Restauração neoliberal
Assim que chegaram ao Palácio do Planalto, Temer e Cia apressaram-se a impor ao país uma agenda de radical restauração neoliberal, a mesma que foi rejeitada e derrotada pelo povo brasileiro nas quatro últimas eleições presidenciais. Tivemos uma nova política fiscal fundada no congelamento dos gastos públicos primários por 20 anos; uma reforma trabalhista que reduz direitos e precariza ainda mais o mercado de trabalho; a abertura do pré-sal ao capital estrangeiro e um conjunto de outras medidas e políticas francamente hostis aos interesses da nação e do povo brasileiro.
O resultado desses dois anos foi um desastre que já estava anunciado e podia ser deduzido da leitura do documento intitulado “Ponte para o futuro”, lançado pelo PMDB em outubro de 2015 e destinado às classes dominantes, que antecipava as políticas neoliberais levadas a cabo pelo governo golpista.
O texto prometia uma coisa, mas o produto final foi outro, e bem diferente. Convém aqui citar o primeiro parágrafo do “Ponte para o futuro”, que a oposição, com maior razão, batizou de “Pinguela para o passado”:
“Este programa destina-se a preservar a economia brasileira e tornar viável o seu desenvolvimento, devolvendo ao Estado a capacidade de executar políticas sociais que combatam efetivamente a pobreza e criem oportunidades para todos. Em busca deste horizonte nós nos propomos a buscar a união dos brasileiros de boa vontade. O país clama por pacificação, pois o aprofundamento das divisões e a disseminação do ódio e dos ressentimentos estão inviabilizando os consensos políticos sem os quais nossas crises se tornarão cada vez maiores.”
Ocorreu precisamente o contrário.
Tragédia social
Conforme os críticos alertaram, o congelamento dos gastos públicos não produziria o equilíbrio das contas públicas, mas em contrapartida seria naturalmente acompanhado do retrocesso das políticas sociais, com cortes dramáticos das verbas destinadas à saúde, educação, habitação e outros programas sociais. Colocaria em risco a ciência e tecnologia, a educação e o desenvolvimento nacional, que não pode prescindir dos investimentos públicos.
E não deu outra.
O quadro que presenciamos é ainda mais grave do que julgava a oposição. Quanto à reforma trabalhista, em vez de mais emprego teve por saldo predominante, senão exclusivo, o avanço assustador da precarização, com o crescimento do trabalho intermitente e a terceirização.
A leitura das estatísticas do IBGE não deixa margens a dúvidas sobre os saldos sociais do golpe. Foram computadas 27,7 milhões de pessoas carentes de emprego no segundo trimestre de 2018. Em dezembro de 2017 o número de trabalhadores informais (assalariados sem registro em carteira ou por conta própria) ultrapassou pela primeira vez na história o de empregados formais: 34,2 milhões (37,1% do total) contra 33,3 milhões.
O Brasil voltou ao Mapa da miséria da ONU (com 23 milhões abaixo da linha de pobreza), a mortalidade infantil está em alta, depois de décadas em queda, e a violência no campo e nas cidades bate recorde sobre recorde. Vivemos uma tragédia social.
Ao contrário do que prometia o “Ponte para o futuro”, a economia não foi “preservada” mas condenada ao pântano da estagnação, depois de dois anos de depressão que subtraíram 7,2% do nosso PIB. A capacidade do Estado executar políticas sociais foi reduzida a zero. Em vez de pacificação o golpe acirrou as contradições e divisões de classes, a violência, as discriminações, a disseminação de ódios e ressentimentos.
Forma e conteúdo
Se o golpe pode ser considerado um tanto quanto brando pelos métodos e os nobres motivos apregoados pelos seus patrocinadores, revelou em contraste um conteúdo profundamente ofensivo aos interesses nacionais e populares. Supera, neste aspecto, o putsch de 1964, que não foi tão longe em matéria de agressão ao Direito do Trabalho ou à soberania nacional. Além disto, é forçoso reconhecer que o regime militar obteve inegáveis êxitos econômicos com base num tripé que ficou famoso: investimentos estatais, investimentos privados nacionais e investimentos estrangeiros.
A dolorosa aventura militar só foi encerrada em 1995 com a eleição de Tancredo Neves no Colégio Eleitoral. Durou 21 longos anos, o que tem muito a ver com o chamado “milagre econômico”, período em que o crescimento do PIB chegou a 14% ao ano, da mesma forma que as primeiras notas do dobre de finados da ditadura dos generais emanaram da crise da dívida externa, que levou o governo Figueiredo a fechar um malfadado acordo com o FMI, condenando o Brasil à recessão (1981-1983) e a pelo menos duas décadas perdidas.
Os tempos são outros e é pouco provável que o golpe liderado pela dupla Temer/Cunha tenha uma vida assim tão desesperadoramente longa, mesmo porque do ponto de vista econômico e social a restauração neoliberal é, notoriamente, um grande fiasco.
Seja lá como e quando for o seu fim, é necessário entender que a empreitada golpista está inserida num contexto maior de crise internacional, do qual não deve nem pode ser abstraída. Trata-se da crise da ordem internacional estabelecida através dos acordos de Bretton Woods (1944), que em outras palavras podemos caracterizar como a crise da hegemonia econômica e política dos EUA, que por sinal estão mais seriamente envolvidos no golpe de 2016 do que sugerem as aparências.
O golpe no Brasil é parte da onda conservadora que irrompeu em toda a América Latina e Caribe, bem como em outros cantos deste vasto mundo. É parente próximo não apenas dos golpes em Honduras (que afastou Zelaya da Presidência, em 2009), e do impeachment relâmpago de Fernando Lugo no Paraguai, em 2012, como dos retrocessos neoliberais na Argentina, Equador, Chile e outros países da região.
Conexão universal
Todos esses acontecimentos estão profundamente entrelaçados e fazem parte de um mesmo processo de luta. Têm por pano de fundo a crise geopolítica e a transição para uma nova ordem mundial, que teve seu esboço por aqui no novo arranjo regional, ainda embrionário, que estava sendo desenhado pelo menos desde a rejeição da Alca (2005), a criação da Unasul (2008) e da Celac (2010), tudo na contramão da estratégica hegemonista de Washington.
Este processo de mudança do cenário político em nossa região nunca foi harmonioso e pacífico, desde sempre foi contraditório e conflituoso, traduzindo o choque e a luta entre o novo que nascia e ainda engatinhava e o velho que, embora decadente e em decomposição, resiste e exibe uma força respeitável, que no momento se expressa nas reviravoltas políticas e na restauração do neoliberalismo. Hoje o processo de mudança geopolítico foi interrompido e está a ser revertido pela séria de golpes e avanço da onda conservadora, numa obra comandada pelos EUA em aliança com as burguesias locais.
Não vivemos tempos normais, mas uma época crítica e a tendência objetiva da história é de que o novo prevaleça sobre o velho, ainda que à custa de grandiosos sacrifícios. Quanto ao golpe de 2016 acumulam-se os indícios que que terá um fôlego bem mais curto do que muitos imaginavam. Seu primeiro grande teste virá em outubro.
A oposição não teve a sabedoria de unificar forças para garantir uma vitória no primeiro turno. Mas as intenções de voto no ex-presidente Lula, preso político numa cela da PF em Curitiba, assim como a performance medíocre do principal candidato da direita neoliberal, o tucano Geraldo Alkmin (um picolé de chuchu), indicam que a vitória é possível. Se as forças políticas mais conscientes e consequentes conseguirem esclarecer o eleitorado sobre o que está em jogo e convencê-lo sobre quem representa Lula no pleito veremos em 2019 a derrota dos golpistas, a interrupção e início da reversão do retrocesso neoliberal.
Lutemos para que assim seja.
Umberto Martins é jornalista e assessor da CTB