Por Guilherme Azevedo – UOL, em São Paulo
Protesto organizado pela CGT em Paris contra a reforma trabalhista do governo francês – Bertrand Guay/AFP
Os 50 anos do Maio de 68 são oportunidade para recuperar a memória do movimento que abalou o poder na França e apresentá-lo do ponto de vista do trabalhador, indo além dos protestos estudantis que povoam o imaginário desde então.
Às vezes juntos com estudantes universitários, em outras tantas separados, os operários franceses marcharam pelas ruas de Paris e de outras grandes cidades da França em maio e junho de 1968, fizeram piquetes, ocuparam fábricas e produziram a maior greve da história da França, levando cerca de 10 milhões de pessoas a cruzarem os braços.
Os resultados do protesto foram práticos e marcantes: elevação geral dos salários em 10%, além da conquista da quarta semana de férias.
A liderança do movimento esteve nas mãos de dirigentes da CGT (Confederação Geral do Trabalho), a maior central sindical da França, criada em 1895 e que hoje congrega cerca de 30 categorias profissionais nacionais. Um nome se projetou na época e entrou para a história do movimento sindical: Georges Séguy, o secretário-geral da CGT, à frente dos operários franceses.
Cinquenta anos depois, o movimento sindical na França agora se confronta com as propostas de reforma trabalhista do presidente Emmanuel Macron, quem acusa de prejudicar o trabalhador ao afrouxar normas de contratos de trabalho.
Diversas categorias na França, como os aeroviários, os ferroviários, os profissionais da saúde pública e os estudantes universitários, vêm se manifestando nos últimos meses contra mudanças e propostas de Emmanuel Macron.
A oposição à Macron diz que um novo grande ciclo de mobilização está chegando. Com base na composição social atual do mundo, será possível um novo Maio?
Embora reconheçam que “a história não se repete”, veem no aprofundamento da concentração da riqueza nas mãos de poucos a certeza de que um novo Maio virá.
“Quando e sob qual forma, só o futuro dirá”, afirmam por escrito ao UOL Fabrice Angeï, secretário confederativo da CGT, e o Instituto de História Social da central sindical francesa.
Fabrice Angeï e o secretário-geral da CGT, Philippe Martinez – Patrick/AFP
UOL – Como podemos analisar os acontecimentos de Maio de 68 em relação a todo o movimento dos trabalhadores, segundo a CGT (Confederação Geral do Trabalho)?
Fabrice Angeï – Algumas pessoas, e sobretudo os discursos veiculados pela mídia, tendem a relegar o Maio de 68 a um movimento estudantil e da sociedade com uma aspiração dos jovens, mas não podemos nos esquecer das mulheres, que encontraram maior liberdade e democracia.
Também os acontecimentos de maio e junho de 1968 continuam marcados como a maior greve da história social com a convocação da greve lançada no dia 13 de maio por iniciativa da CGT. A greve se espalhou de uma forma que ninguém havia imaginado. Mais de 10 milhões de trabalhadores do país inteiro, em todos os setores de atividade, desde a indústria até as lojas de departamento, pararam de trabalhar e ocuparam os locais de trabalho.
Os trabalhadores conseguiram, no total, conquistas mais importantes e em domínios mais diversificados do que em 1936 [marco do movimento trabalhista na França, que gerou os chamados acordos de Matignon, de 7 de junho de 1936, com reajustes salariais de até 15%, para os trabalhadores com salários mais baixos; o direito à sindicalização e à greve, sem sanções patronais por causa disso]. Não houve somente os acordos de Grenelle [nome da rua onde se situa o Ministério do Trabalho francês; o anúncio dos acordos se deu em 27 de maio] firmado com o governo francês, com o aumento de 35% do salário mínimo interprofissional garantido, de 55% do salário mínimo rural, a legalização do direito sindical nas empresas. As negociações por setor profissional que se seguiram às de Grenelle, durante a primeira semana de junho, completaram de maneira substancial o acordo geral: recolocações, progressão de carreira, tempo e condições de trabalho, melhorias das convenções coletivas etc.
Embora esse movimento não tenha derrubado o capitalismo, ele transformou a sociedade e as mentalidades. A junção entre os estudantes e os trabalhadores contribuiu muito para que o Maio de 68 assombrasse o sistema econômico e social como produtor de sentido, de mitos, mas também de consciência e de afirmação de novas solidariedades.
Embora não tenha derrubado o capitalismo, Maio de 68 transformou a sociedade e as mentalidades
Fabrice Angeï, dirigente da maior central sindical da França
Referência para os trabalhadores e os estudantes, o Maio de 68 nunca deixou de assombrar os meios patronais e o coro dos exterminadores do movimento. Confundir, falsificar, riscar do mapa e sobretudo atacar as conquistas sociais de 68, como o poder aquisitivo, a proteção social, os serviços públicos, a indústria…
[O presidente francês] Emmanuel Macron segue bem essa linha. Para ele, o objetivo não mudou em 50 anos: apagar do patrimônio nacional tudo que fez o 68, o movimento estudantil e social, as aspirações e os resultados, as marcas que movem ou estimulam as lutas dos trabalhadores para defender as conquistas e conquistar novos direitos.
O presidente Emmanuel Macron, eleito em maio de 2017 – Foto: Bertrand Guay/AFP
UOL – O que ameaça os trabalhadores franceses hoje? Como se posicionam diante do governo?
A principal ameaça aos trabalhadores franceses hoje é a insegurança profissional que pesa sobre eles. Os decretos de Macron [de setembro de 2017, impondo uma reforma trabalhista que flexibiliza acordos entre empresas e empregados] precarizaram ainda mais os trabalhadores, que agora podem ser demitidos com muita facilidade; os contratos de trabalho não protegem mais; a “lei” é feita dentro da empresa com todos os riscos de “dumping” social através da concorrência com funcionários das diferentes empresas; as convenções coletivas estão sendo enfraquecidas.
O mesmo vale para os funcionários públicos, com o corte de cargos e ameaça contra seu status. Mesmo os trabalhadores autônomos estão se dando conta da enganação do autoemprego, quando nove entre dez não conseguem ter uma renda superior aos benefícios sociais mínimos (média de 500 euros por mês, sendo que o limiar de pobreza é de 900 euros por mês).
No entanto, os trabalhadores estão começando a erguer a cabeça. Houve greves e manifestações significativas desde as primeiras medidas do governo Macron e hoje as mobilizações nos diferentes setores profissionais estão se multiplicando e virando manchete na mídia: Air France, os ferroviários, funcionários de hospitais e de casas de repouso, funcionários públicos. Só falta conseguir uma convergência entre todas essas mobilizações.
É indispensável que o sindicalismo cuide de todos os trabalhadores, independentemente de seu status, inclusive os autônomos
Fabrice Angeï, dirigente da maior central sindical da França
UOL – Quais são as principais demandas dos trabalhadores franceses hoje?
As demandas dos trabalhadores hoje dizem respeito aos salários. Eles querem ter os meios para fazer bem seu trabalho, sobretudo os servidores e funcionários públicos, querem que sua cidadania dentro da empresa seja reconhecida com um poder de intervenção sobre as escolhas que são feitas e impactam seu cotidiano e suas vidas.
Um relatório recente da ONG Oxfam France indica que mais de 67% das riquezas criadas vão para os acionistas e somente 5% para os empregados. Essa situação é inaceitável.
UOL – Como o sindicalismo francês está se preparando para a chamada 4ª Revolução Industrial [em que novas tecnologias, como de inteligência artificial, confrontam novamente a força de trabalho humana, aposentando antigas funções e profissões]?
A proximidade com os trabalhadores continua sendo de praxe, a solidariedade é um valor. A fragmentação da classe dos assalariados, a predominância dos executivos, dos engenheiros e dos técnicos, a globalização da produção de bens e serviços, a revolução digital são elementos novos a ser levados em conta ou que se amplificaram, mas que não mudam o caráter da ação e da atividade sindical.
É indispensável que o sindicalismo cuide de todos os trabalhadores, independentemente de seu status, inclusive os chamados trabalhadores autônomos e aqueles que são desprovidos de estatuto para levar em conta o conjunto do coletivo do trabalho. É indispensável trabalhar por garantias coletivas que acompanhem individualmente o trabalhador ao longo de sua trajetória profissional até a aposentadoria, em um universo econômico onde será necessário mudar de profissão e de empregador, mas sem ter de partir do “zero” a cada vez em termos de reconhecimento das qualificações e dos direitos.
Por outro lado, mais do que nunca, é indispensável uma iniciativa internacional sindical com cooperações entre as organizações sindicais de todos os continentes.
Mais do que nunca, é indispensável uma iniciativa internacional sindical com cooperações entre as organizações sindicais de todos os continentes
Fabrice Angeï, dirigente da maior central sindical da França
UOL – É possível um novo Maio de 68?
Georges Séguy [histórico secretário-geral da CGT, entre 1967 e 1982, que liderou o movimento grevista no Maio de 68, morto aos 89 anos no dia 13 de agosto de 2016] disse, e eu o cito: “Os acontecimentos de maio e junho de 1968 não surgiram ‘como um trovão em um céu sereno'”.
Eles tiveram causas demográficas (mais de um terço da população tinha menos de 20 anos), políticas (o regime gaullista [do general Charles de Gaulle, de tipo centralizador e autoritário), internacionais (guerra do Vietnã, América do Sul), econômicas (concentração, crescimento forte, mas aprofundamento das desigualdades sociais), sociais (força numérica da classe operária, ascensão das novas camadas de assalariados, como executivos e empregados) e de sociedade (mudança dos costumes e modos de vida, popularização da TV, dos eletrodomésticos).
Embora muitos desses elementos apareçam hoje como uma situação internacional alarmante, com seus riscos de guerra, explosão das desigualdades sociais e seleção de entrada na universidade, a história não se repete. O Maio de 2018 não é o Maio de 1968. Os trabalhadores mudaram, a unidade de ação sindical está ainda mais difícil e fragmentada, com muitos sindicatos e menos seguidores, só restou o capitalismo como modelo, a resignação está inculcada nas pessoas. Tudo isso torna difícil uma mobilização em massa.
Georges Séguy, símbolo da luta por direitos e dignidade na França – AFP
No entanto, as mobilizações contra a legislação trabalhista, as mobilizações pelos serviços públicos, por melhores condições de trabalho, o despertar da juventude e dos aposentados que estão tomando as ruas frente à redução de suas pensões mostram que a revolta está se propagando e pode estourar.
O papel do sindicalismo e da CGT é dar esperança, mostrar que o progresso social é possível em uma sociedade que nunca produziu tanta riqueza para viver melhor e “viver juntos” como agora. É por isso que a CGT é portadora de projetos e de propostas concretas. Também precisamos trabalhar no reforço da sindicalização.
É certo que, com os 10% mais ricos sendo detentores de 86% das riquezas do mundo, virá um novo Maio de 68. Quando e sob qual forma, só o futuro dirá
Fabrice Angeï, dirigente da maior central sindical da França
UOL – Qual foi a importância da figura e da atuação de Georges Séguy, líder no Maio de 68? Qual foi o legado específico dele para a história do movimento sindicalista francês?
Instituto de História Social – Foi em 1967 que Georges Séguy se tornou secretário-geral da CGT. Aos 41 anos de idade, ele precisou administrar um movimento grevista sem precedentes. Cercado por homens experientes, como Benoit Frachon, que se tornou presidente da CGT, Georges Séguy conseguiu ser reconhecido como um dirigente sindical de envergadura. Foi ele que conduziu a intervenção da CGT durante a ascensão do movimento, foi ele também que definiu a ordem do dia das negociações de Grenelle. Em seguida, Georges Séguy fez grandes esforços para que a ação sindical se adaptasse às mudanças do trabalho e dos assalariados. Sua ação para os jovens foi especialmente importante. [Séguy nasceu em Toulouse, em 16 de março de 1927. Ainda adolescente, militou na Juventude Comunista, contra o fascismo e o nazismo, e acabou preso em 1944 pela polícia nazista, sendo deportado para um campo de concentração na Áustria. Libertado pela Cruz Vermelha, em 1945, tirou dos horrores que viu e viveu a lição para toda a vida: “Minha vida de uma maneira não mais me pertencia; ela pertencia à causa pela qual lutamos e pela qual tantos de nós morremos”.]
UOL – Quando pensamos no movimento de 1968, vemos imagens de estudantes protestando no Quartier Latin, na Sorbonne, e menos de trabalhadores e greves. O senhor acha que o movimento operário ficou à sombra do movimento estudantil na história? Se sim, por quê?
IHS – A memória costuma ser alvo de lutas incessantes. É verdade que o lugar dos trabalhadores no decorrer dos acontecimentos de maio e junho de 68 foi sendo aos poucos esquecido em benefício dos estudantes.
Por razões diversas, certos estudantes que protagonizaram o 68 procuraram diminuir a extensão do movimento social. Estamos aqui em questões de batalha ideológica. Para ser reconhecido, o liberalismo precisa mascarar certas realidades, sobretudo quando elas são sociais. Foi preciso esperar o fim dos anos 2000 para que o aspecto social de 68 fosse atualizado, sobretudo como resultado do trabalho de alguns historiadores. Apesar de tudo, ainda hoje, na grande mídia, é o aspecto estudantil de 68 que domina.
UOL – Existiria um Maio de 68, com a dimensão que ele mostrou, sem a participação dos trabalhadores?
IHS – Com a manifestação sindical de apoio aos estudantes em 13 de maio, o movimento assumiu outra dimensão. Era o maior movimento grevista da história da França que se iniciava. As fábricas foram ocupadas. Sem isso, é razoável pensar que o movimento estudantil não poderia durar, nem deixar uma marca na memória.
UOL – O que restou do espírito de 68 no movimento sindical francês de hoje? Qual foi o legado dessas lutas sindicais hoje?
IHS – Em 1968, os militantes agiram tendo 1936 como referência. 1968 não exerceu o mesmo poder de influência depois. Em 1995, durante o grande movimento grevista dos ferroviários, a referência a 68, por exemplo, foi quase inexistente.
Contudo, é preciso ressaltar os inúmeros slogans que fazem referência a 68 nas manifestações que têm ocorrido neste momento. O cinquentenário ajuda nisso. Hoje, é comum propor a greve geral.
É preciso ressaltar que, em 1968, a greve conseguiu fazer o governo recuar. Mas 68 foi também a implantação da seção sindical em empresas e um aumento forte dos salários, não podemos nos esquecer.