“Não escute o mal, não fale o mal, não veja o mal.” Arte de Keith Haring
Um dos dispositivos mais efetivos para exercer controle sobre a sociedade é o cerceamento à liberdade de expressão.
A restrição das manifestações culturais, das ideias, opiniões e informações que circulam na sociedade pode se dar de várias formas: pela concentração dos meios de comunicação na mão de grupos que compartilham dos mesmos valores e interesses, pelo ocultamento das divergências, das lutas e expressões culturais, pelo uso da violência para impedir a livre manifestação do pensamento, pela censura jornalística e cultural, pela perseguição ideológica.
Todos estes elementos estão presentes na sociedade moderna, em alguns momentos de forma mais latente, em outros de forma mais explícita, a depender do contexto político de cada período histórico.
A construção de uma sociedade democrática é a busca de um equilíbrio entre as várias estruturas de poder nela existentes: mídia, judiciário, economia, política, cultura, religião.
A convivência racional entre estas esferas da sociedade – na busca de uma harmonia entre as diferenças, que se chocam dentro de um relativo contexto de respeito e tolerância – é o que permite o Estado Democrático de Direito e, consequentemente, a vigência da democracia.
No entanto, quando por motivos econômicos e políticos esse equilíbrio é desfeito, quando uma ou mais destas estruturas de poder passa a se sobrepor ou determinar as regras sociais, a democracia se vê ameaçada. A quebra deste equilíbrio, que antes se dava pela força bruta, agora se dá através de instrumentos aparentemente democráticos para lhe conferir uma legitimação.
E é exatamente esta situação que o Brasil vive hoje. O sistema da Justiça e a mídia passaram a atuar de uma forma mais aberta para deslocar o equilíbrio social, usando um das competências jurídicas, e outro do monopólio do discurso para interromper um processo político e social que vinha sendo construído no país.
Essa construção se dava pela escolha livre e soberana dos governantes, pelos instrumentos de participação social criados para garantir que a sociedade pudesse contribuir com a construção de políticas públicas e com a ampliação, mesmo que precária, do debate público.
Nesse processo, Justiça e Mídia criam um ambiente de supressão de direitos, mesmo que sob a forma de defesa destes, que levam à restrição da democracia.
Isso é fundamental para controlar a reação da sociedade às medidas de retirada de direitos sociais, trabalhistas, de desmantelamento do Estado, com as privatizações e a desnacionalização da economia.
Neste ambiente, a liberdade de expressão é um dos primeiros direitos a serem comprometidos. O Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) tem alertado, desde o golpe que tirou Dilma Rousseff da Presidência da República, para o preocupante aumento nos casos de violações à liberdade de expressão.
Percebendo que num contexto de ruptura da soberania do voto popular, o governo que assume o país não têm qualquer compromisso com os interesses sociais e há inevitavelmente uma suspensão da democracia, o FNDC lançou em outubro de 2016 a campanha Calar Jamais!, para receber e dar visibilidade às denúncias de violações à liberdade de expressão.
Em um ano de campanha, divulgamos mais de 70 casos de violações. Praticamente uma denúncia a cada três dias úteis entre 18 de outubro de 2016 a 18 de outubro de 2017. Estes casos são alguns dos que foram noticiados, denúncias e dos quais a sociedade pôde, de alguma maneira, tomar conhecimento. Mas não seria demais afirmar que possivelmente mais de uma centena de outros casos devem ter ocorrido e, dos quais, não tomamos conhecimento.
Esse quadro mostra que, sem um Estado garantidor de direitos, a democracia fica asfixiada. E este quadro não poderia ser diferente, uma vez que o aparato público está a serviço da supressão de direitos para impôr uma agenda política e econômica que representa os interesses de uma minoria contra a ampla maioria do povo.
Nestes momentos, ganham mais espaço exatamente as agendas conservadoras, que são em sua essência punitivistas e cerceadoras das liberdades. O que temos visto no campo da Cultura, com os ataques à exposições em museus, o discurso moralista contra o corpo e sua representação, a discussão da “Escola Sem Partido” e o exacerbamento dos preconceitos é fruto deste desarrajo na harmonia entre as estruturas de poder.
Essas posturas não se dão por acaso. Elas são conscientemente construídas para dar um sentido cultural e social para o período de restrição democrática. Não são as “carolas” que precisamos combater para enfrentar esse quadro de cerceamento das liberdades, é o discurso organizado das estruturas de poder que querem impôr um modelo político, econômico e social.
A questão que precisamos enfrentar é que a supressão de direitos fundamentais – entre os quais a liberdade de expressão – se dá a partir de instrumentos aparentemente legais e de proteção.
Afinal, o ataque à Cultura está se dando pelo discurso de que é preciso “proteger a infância”, a repressão aos protestos se dá pelo viés da manutenção da ordem (lema autoritário resgatado pelo presidente imposto), a censura contra comunicadores, jornalistas e veículos de comunicação se dá pelo argumento do combate à injúria, calúnia e difamação, e assim vai se construindo uma simbologia legal e socialmente aceitável para atacar a democracia e os direitos.
Para enfrentar este cenário é preciso muita luta, denúncia e diálogo. Insurgência social para reestabelecer o interesse público, para retomar nas mãos do povo os mínimos instrumentos de democracia formal. Denúncia das violações aos direitos fundamentais.
Precisamos usar todos os canais existentes para denunciar as violações à liberdade de expressão, para mostrar para o mundo os retrocessos civilizatórios que estão impondo à sociedade – retorno do trabalho escravo, perseguição a cultura e à educação, impedimento do livre exercício do pensamento, livre circulação de ideias, opiniões e informação na sociedade. E diálogo com o povo. O povo precisa sair da hipnose catártica em que está imerso, precisamos discutir com as pessoas, das mais simples as mais ilustradas, o sentido dos movimentos conservadores e das ações do governo.
O FNDC, além de sua luta histórica pela democratização da comunicação, busca dar a sua contribuição neste momento através da Calar Jamais!. Reunimos em um relatório – divulgado no último dia 17 de outubro, em Salvador, nos marcos das atividades da Semana Nacional pela Democratização da Comunicação – 66 casos de violações à liberdade de expressão recebidas pela campanha no último ano.
Como diz a apresentação do relatório, o objetivo do FNDC foi “transformar estatísticas em pessoas, olhar caso a caso os abusos e as violações que tomaram conta do nosso país no esteio do avanço do conservadorismo e da negação de direitos constitucionais conquistados com muita luta há 30 anos”.
Dar voz aos Eduardos, Matheus, Edvaldos, Caios, Madalenas, Teresas, Alessandras, Reinaldos e, a partir desses casos, tentar impedir que essa escalada de violações continue no nosso país.
Renata Mielli é jornalista, coordenadora geral do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação e secretária geral do Centro de Estudos da Mídia Alternativa Barão de Itararé. Colunista da Mídia Ninja às quintas-feiras.