Caro Boechat, escuto todas as manhãs teu programa. Sou juíza do trabalho em Porto Alegre, e Doutora em Direito do Trabalho pela USP. Esta manhã, falastes do projeto defendido por Lasier Martins, eleito pelo meu estado.
Pois bem, gostaria de esclarecer alguns pontos importantes. Em primeiro lugar, a lei vigente (Lei 8.112) já permite a demissão do servidor que não desempenhar bem suas funções (artigos 127 e seguintes). Então, nesse aspecto, não há novidade. Os servidores também já são avaliados periodicamente. Também aqui, nenhuma novidade.
A novidade é inserir critério subjetivo para o que será considerado “mau desempenho”, a fim de facilitar a demissão. Note que a possibilidade de utilização de critério subjetivo permite que o administrador descarte, inclusive, o servidor que não compactue com suas ideias. Ou seja, permite que a ameaça de perda do emprego seja fator de facilitação de perseguição política e assédio moral no serviço público.
E isso em uma realidade na qual já está ocorrendo sucateamento das instituições públicas, parcelamento de salários e perseguição política. Bem sabemos do momento de exceção em que estamos vivendo.
Tu dissestes no programa de hoje que os serviços públicos muitas vezes são mal prestados. É verdade. O problema, porém, não é a garantia que os servidores têm contra a despedida. Se isso fosse verdade, os serviços de telefonia, já privatizados, seriam eficientes. Não são. Temos estruturas deficitárias, demandas em quantidade maior do que a capacidade de atendimento e tantos outros fatores que teriam de ser considerados e que impedem a análise simplista que joga a culpa sob os ombros dos servidores.
Praticamente todos os países ocidentais (todos os europeus certamente) reconhecem garantia contra a despedida para empregados de empresas privadas e estabilidade para várias categorias. Nem por isso, os serviços na Alemanha, por exemplo, são mal prestados.
Servidores não têm privilégios, têm direitos! Direitos que deveriam ser estendidos à iniciativa privada, e não suprimidos. Não podemos capitular diante de um discurso liberal que está rifando direitos mínimos, como se a lógica do “mal menor” fosse o único caminho possível.
O mesmo já ocorreu com a “reforma” trabalhista, que sob falsos argumentos precariza ainda mais as condições de quem trabalha no Brasil, prejudicando com isso não apenas o trabalhador e sua família, mas também o mercado interno, porque reduz o consumo; e o próprio Estado, porque suprime base de arrecadação para a previdência.
Retirar proteção para o trabalhador servidor (que na realidade do Estado que o senador Lasier representa está tendo seus salários parcelados), privatizar, retirar direitos trabalhistas, retirar benefício previdenciário, sucatear instituições públicas, é criar instabilidade. Ou seja, é ruim para todos.
A questão aqui não passa pela qualificação do serviço, mas pela intenção de reduzir ainda mais o número de servidores, prejudicando a prestação eficiente do serviço. Portanto, vai em sentido contrário ao seu discurso.
Essa lei, se aprovada, ao lado da Emenda Constitucional 95, implicará a completa falência dos serviços públicos que, para a realidade concreta de um número expressivo de brasileiros, é a única via para obtenção de saúde, segurança ou justiça.
A proteção contra a despedida é direito dos servidores, mas atende também e principalmente ao interesse público, pois evita (ou tende a evitar) que esses trabalhadores atuem pressionados pelo medo da perda do trabalho, permite que se qualifiquem ao longo do tempo e lhes dá a tranquilidade para bem exercer seu mister.
Ainda, evita a corrupção e o mau uso da coisa pública. A facilitação da demissão de servidores escolhidos mediante concurso está na mesma linha do estímulo à terceirização. A ideia é a substituição de uma força de trabalho qualificada e protegida, por trabalhadores precarizados, contratados por empresas privadas, muitas delas sem patrimônio, de acordo com a vontade de quem está exercendo a administração pública.
Caro Boechat, em um país com tantos desempregados e miseráveis, com tão alta concentração de renda, deveríamos estar batalhando para estender aos empregados da iniciativa privada o direito de não serem despedidos, senão pelo cometimento de falta grave como, repito, já é possível hoje, pela legislação vigente, em relação aos servidores públicos. Fazer campanha pela retirada de direitos sociais, de quem quer que seja, é incentivar o retrocesso. Será que não retrocedemos o suficiente com a “reforma” trabalhista? Chega de retirar direitos sociais!
Os servidores públicos, assim como todos os demais trabalhadores, têm direitos, não privilégios! Se seguirmos trilhando esse caminho de desmanche, o que conseguiremos com isso será a potencialização da miséria, da violência urbana, das doenças ligadas à instabilidade da vida contemporânea.
O discurso de retirada de direitos não promove avanço, não irá qualificar a prestação do serviço público. E não atende ao anseio da sociedade, basta ver os números da consulta pública no site do Senado (101.605 contra e 34.820 a favor). Por te considerar um dos melhores comunicadores da atualidade no Brasil, te peço que reflita acerca da defesa desse projeto nefasto, cuja “propaganda” é já enganosa, pois distorce a realidade vigente. E cujas consequências atingirão, inclusive, o cidadão que necessita de serviços públicos de qualidade.
Abraço fraterno,
Valdete Souto Severo é Doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP; Diretora e Professora da FEMARGS Fundação Escola da Magistratura do Trabalho RS; Juíza do Trabalho; Membro da Associação Juízes para a Democracia AJD. Foto: Reprodução do Youtube
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