Já sabemos. Ser mulher no Brasil é ganhar menos, submeter-se a duplas jornadas de trabalho, colocar o trabalho em risco se engravidar. Também é ser vítima de violência dentro da própria casa, ter sua palavra questionada quando diz ”não”, ver negada a permissão ou mesmo o poder para decidir sobre o próprio corpo.
É ter medo de ser estuprada, ser cotidianamente submetida a violências e constrangimentos. O mais recente caso acrescenta mais uma modalidade em uma longa lista: em uma viagem de ônibus, ter um homem ejaculando sobre seu corpo.
O direito tenta responder a algumas dessas questões. A incorporação do feminicídio às normas penais e normas de proteção e promoção de igualdade no ambiente de trabalho são alguns exemplos de resposta do direito à persistentes violações aos direitos das mulheres. Talvez o melhor e mais recente deles seja a Lei Maria da Penha, que une a criação de novas instituições judiciais com medidas de prevenção à violência e, sobretudo, reparação integral às vítimas.
O direito responde, mas não sem dificuldade, com severas limitações e muita resistência. Não se engane, o direito continua a servir aos homens – não a categoria universal ser humano – mas sujeito específico, homem, branco, heterossexual. O direito é criado por ele e à sua semelhança.
Esse heteronormativismo patriarcal persiste sobretudo em nosso Código Penal. Mulher honesta pode ter caído em desuso, mas outras categorias persistem igualmente antiquadas e discriminadoras.
Quando analisamos especificamente o crime de estupro percebemos esse movimento de mudança e a resistência que se impõe à sua aplicação. Antes tipificado apenas pela conjunção carnal (penetração vaginal) mediante violência ou grave ameaça, hoje o crime de estupro abrange uma série de outras condutas na redação do artigo 213 do Código Penal: “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”.
“Essa deficiência na regulação penal da violência sexual e dos atentados à liberdade sexual não é inocente: representa o descaso, o desconhecimento e a ineficiência de um sistema que não foi criado para proteger mulheres, mas para as expor, culpar e controlar”.
Para além da conjunção carnal (vaginal, oral ou anal), o tipo inclui também outros atos libidinosos, onde certamente estaria incluída a ejaculação sobre outrem. Seria o episódio do ônibus, então, um caso de estupro?
Na audiência de custódia, o juiz responsável pelo caso entendeu que não. Não ignorou a presença do ato libidinoso, mas entendeu não haver constrangimento, nem violência.
Não haveria constrangimento? Não teria a vítima sido obrigada a suportar ato libidinoso contra sua vontade?
O acusado – solto na audiência de custódia – acabou sendo detido por novo ato contra outra mulher também em um ônibus e passará por nova audiência de custódia, na qual o juiz analisará o pedido de prisão preventiva e, também, a insanidade mental.
Sem entrar no debate sobre a pertinência ou não da prisão preventiva nesse caso, que envolve outras variáveis que não apenas a gravidade do crime imputado, a sua reiteração ou mesmo uma doença mental, a decisão parece equivocada ao afastar o constrangimento.
Com casos como esse pipocando pelas manchetes de jornais, saber como enquadrar essas condutas ganha enorme relevância. Havendo ato libidinoso e constrangimento, seria estupro? Porque tantas dúvidas em relação à adequação do ato ao tipo penal?
Nem todo constrangimento, no Direito Penal, é violento.
Constranger é tolher a liberdade de alguém, viciando sua vontade de tal sorte que deixe de fazer o que lei não manda, ou a fazer o que lei não obrigue.
Em sua forma criminosa básica, quando o constrangimento se dá pela via da grave ameaça ou mesmo da violência física, dá corpo ao crime de constrangimento ilegal, com penas que variam de três meses a um ano de detenção, ou multa.
Se, todavia, esse constrangimento violento é direcionado à obtenção de uma vantagem econômica ou a coisa alheia móvel, então tem-se os delitos de extorsão ou roubo, respectivamente. Nesse caso, a resposta estatal aumenta para reclusão, de quatro a dez anos, e multa.
É no ápice do tratamento penal dos constrangimentos violentos que está aquele que incide na liberdade sexual, com reclusão de seis a dez anos, e multa. Além do tratamento particularmente duro dado aos crimes hediondos.
Onde enquadrar, então, nessa escalada de constrangimentos, a ejaculação em mulher que cochila o cochilo dos justos em transporte público?
Ele é (bem) maior que a pífia reprimenda à contravenção de ”importunar alguém, em local público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor”: multa, apenas. Mas há de ser menor daquele empregado para realizar, com violência e grave ameaça, ato libidinoso contra a vontade da mulher.
Há um tipo penal que não mencionamos, também de ”constranger alguém”, que, por ter natureza sexual, talvez nos dê um norte: é o crime de assédio sexual constranger alguém, para obter vantagem ou favorecimento sexual, ”prevalecendo-se o agente de sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função”. Aqui a pena é de detenção de 1 a 2 anos.
Nesse tipo, o constrangimento não é fisicamente violento, mas simbólica e psicologicamente. Incrimina-se a pressão, o assédio, a insistência. Um ato concreto, portanto, extrapola o tipo.
Como a ejaculação transcende o puramente simbólico e psicológico, na medida em que se materializa na nojenta exposição física àquele indesejado fluído corporal, seria mais grave, em nossa opinião, do que o assédio sexual.
O diagnóstico mais preciso é aquele que reconhece que esse ordenamento heteronormatico e patriarcal falha e resiste, mais uma vez, na proteção do “sujeito” de direitos mulher.
Afinal, nessas dúvidas reside mais uma das variadas facetas de um ordenamento jurídico heteronormativo e patriarcal. O crime de estupro, na sua nova formulação, abrange condutas tão diversas em gradações tão amplas de gravidade que sofre de um severo déficit de implementação. Para condutas menos graves, o crime aparece em demasia; para outras gravíssimas, aparece de menos.
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Essa deficiência na regulação penal da violência sexual e dos atentados à liberdade sexual não é inocente: representa o descaso, o desconhecimento e a ineficiência de um sistema que não foi criado para proteger mulheres, mas para as expor, culpar e controlar.
O Direito Penal (como prática e como legislação) está impregnado do heteronormativismo patriarcal, e isso se percebe na construção dos tipos penais e na própria narrativa da decisão, que, para aplicar a lei, nega (sem precisar!) o efetivo constrangimento sofrido. Mais uma das incontáveis lacunas, mais uma diferença, mais uma discriminação. Esse buraco, porém, não se preenche com apelos punitivistas e com sacrifício à regra constitucional da legalidade estrita.
Eloísa Machado e Davi Tangerino são professores da FGV Direito SP
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