A reflexão, a crítica e a autocrítica (lamentavelmente em desuso) podem oferecer ao sujeito do processo histórico condições objetivas de intervenção segura.
Por isso mesmo talvez seja este o momento de nos perguntarmos o que as forças progressistas e de esquerda aprenderam com o estudo da História e, de particular, com sua história específica e recente, inventariando acertos e sopesando os erros.
Optando pela via democrática de conquista do poder, conquistamos o governo, mas confundimos coligação partidária-parlamentar, a composição necessária com o outro, diverso e divergente, com aliança final de propósitos.
Daí foi só um salto para cair na ilusão do fim da luta de classes.
A esquerda apostou na quimera com a qual a direita, todavia, jamais se comprometeu.
O processo democrático tout court, compreendendo a realização de eleições e o respeito ao seu resultado, jamais foi um compromisso da direita brasileira, que, derrotada pelo voto popular, opta, como regra, para chegar ao poder ou apear a esquerda, pelo caminho mais curto, o da ruptura das regras do jogo, isto é, o golpe de Estado em suas variadas formas, inclusive a militar.
Em outras palavras: a conquista ou conservação do poder é, para a classe dominante e seus representantes, o grande fim, sem limites éticos para a escolha dos meios, porque o fim último, a conquista do poder, tudo pretende justificar.
Esta é a marca mais distintiva da política brasileira da última metade do século passado, que lamentavelmente ameaça projetar-se no Terceiro Milênio, frustrando a consolidação de um primeiro projeto de democracia de massas, insinuado pela ascensão de significativos setores populares à vida política e ao mercado de consumo.
Não é respeitável o currículo das forças liberais e conservadoras, as quais jamais admitiram a conciliação de classes (a coabitação no mando político) – a ingênua aspiração do varguismo dos anos 50, reiterada pelo lulismo. Em ambos os casos com os resultados conhecidos.
Em 1954, respondendo à sua derrota para Getúlio Vargas nas eleições de 1950, a direita civil-militar logrou a tomada do Palácio do Catete com o golpe de 24 de agosto e a consequente e imediata posse de Café Filho, substituindo no posto o presidente suicida.
Impossibilitada de evitar as eleições presidenciais de 1955, pretendeu impedir a candidatura de Juscelino Kubitscheck, que ameaçava varrer do Catete seus novos ocupantes; consolidada essa candidatura, tentou impedir sua eleição; consagrada esta, a última cartada seria impedir sua posse, seja com a tese inconstitucional da exigência de maioria absoluta, seja pelo golpe militar pura e simplesmente.
Solução frustrada com a reação do Ministro da Guerra, general Teixeira Lott, no famoso e já histórico “11 de novembro”.
A primeira possibilidade de conquista do poder, pela via eleitoral, pela direita, surgiu em 1960, quando saltou no colo do populismo irresponsável de Jânio Quadros, com quem, todavia, no governo, logo se desentenderia.
O pomo da discórdia foi a política externa independente. Com o fracasso da tentativa de golpe de Jânio Quadros, de que decorreu sua renúncia cair no vazio, viu a reação civil-militar configurar-se, com a iminente posse de João Goulart, vice-presidente e sucessor constitucional, a insuportável ameaça de retomada do poder pelas forças populares. Jango era tido como o sucessor de Vargas.
Derrotada nas ruas a intentona militar de 1961 pela resistência comandada por Leonel Brizola, sobraram-lhe, porém, forças para impor a um Congresso de joelhos a reforma parlamentarista que, em duas noites, mudou o regime brasileiro e ceifou poderes do presidente, condição para a posse de Jango.
Quando foi dada ao povo, outra vez, a oportunidade de manifestar-se, desta feita em plebiscito (1963), o golpe do parlamentarismo foi desfeito e restabelecido o regime presidencialista de governo.
Mas a direita não se deu por vencida e engendrou o golpe militar de 1964, assimilado pelo Congresso, de novo de cócoras, e por um Supremo Tribunal Federal associado.
No seu discurso de posse, o marechal Castello Branco, eleito pelo Congresso, anunciou a manutenção das eleições presidenciais de 1965, para as quais, porém, despontava, incômodo, de novo ele, o ex-presidente Juscelino Kubitscheck.
Resultado: ficamos sem eleições diretas até 1989, para surpresa dos que então supunham que tudo não passaria de “uma quartelada”!
Em 2014, a derrota para Dilma Rousseff se afigurou como insuportável, e a direita valeu-se de todos os meios para anulá-la, objetivo alcançado, por fim, com o impeachment, e a posse do vice-presidente perjuro.
O projeto dos atuais ocupantes do Palácio do Planalto, é, finalmente, destruir a “era Vargas”, sonho herdado de FHC e do tucanato, experimento que começa a materializar com a desmontagem das bases da legislação trabalhista.
Armam-se para estender, quanto possível, a estada no poder.
A direita, porém, vê crescer nas ruas a candidatura de Lula, a cuja força eleitoral não consegue antepor outro nome em condições de disputa. Se é preciso, pois, que haja eleições, é preciso que Lula não seja candidato; se candidato, que não seja eleito; se eleito, que não tome posse; se tomar posse, que seja defenestrado, como foram Getúlio, Jango e Dilma.
A sabotagem ao processo democrático se opera por partes.
É preciso, primeiro, preparar o terreno político. E os grandes jornais já começam a falar das inquietações do imperador mercado em face das eleições, quaisquer, pois elas “ameaçam a recuperação fiscal”.
No Valor, na sexta 21, respeitado porta-voz do sistema, Armínio Fraga, eventual ministro no eventual governo de Rodrigo Maia, declara: “O que mais atrapalha a recuperação [econômica] neste momento provavelmente ainda é [o pleito de] 2018”.
No dia seguinte, o jornal estampa mensagem ainda mais explícita: “Eleições podem impor retrocesso às reformas”. É o título-resumo do artigo de Ângela Bittencourt, que traz à lide um investidor “que não quis identificar-se”, e esse fantasma sussurra: “A eleição presidencial de 2018 poderá minar o esforço empreendido até agora para aprovar reformas estruturais com o objetivo de promover uma recuperação econômica, capaz de minimizar os efeitos inquestionáveis da Operação Lava Jato sobre a atividade”.
Mas é preciso pensar, também, na inevitabilidade de eleições, e pensando assim, ainda segundo a colunista, o “entrevistado” lamenta que Henrique Meirelles – seu candidato in pectoris – não tenha viabilidade eleitoral. Em tal hipótese, diz, o candidato deve sair do PSDB.
São, ou seriam, palavras do anônimo: “O PSDB é um atestado de qualidade de política econômica. Qualquer candidato seria recebido dessa forma”, e, aproveitando o diapasão, logo indica Geraldo Alckmin e Doria Jr.
Esses nomes, mais o de ACM Neto, são os festejados por Alfredo Setúbal, presidente da Itaúsa, a holding do grupo Setúbal-Moreira Salles. Descrente da alternativa Maia, o banqueiro dita ao Estadão: “O cenário ideal seria de continuidade para evitar uma nova crise. E preciso dar continuidade às reformas, como a da Previdência”.
Em síntese é isso: o leitmotiv do grande capital são as tais “reformas”. O resto que se lixe.
Se de todo for impossível evitar essas eleições, ou se elas não puderem se desenvolver sob segurança, se não for possível deter Lula (o Estadão de 15.7.17 já anuncia: “Supremo deve manter condenação de Lula”) ou afastar de vez a ameaça de qualquer candidato à esquerda, a alternativa já está costurada: é o parlamentarismo, que, entre nós, não é um regime de governo mas instrumento de golpe de Estado que visa a afastar o povo das eleições.
O senador José Serra abandona seu silêncio e levanta a tese golpista com roupagem constitucional, e o presidente do Senado de imediato anuncia a criação de uma Comissão Especial para examinar a proposta, indicando para relatá-la o senador paulista em retirada da vida pública.
O Globo, na terça 25, traz sua contribuição na coluna de Merval Pereira que descobriu mais um “cientista político”, para quem, diz o jornalista, “aqueles que desde 1985 (…) têm militado pela substituição do atual presidencialismo puro pelo parlamentarismo puro ou pelo semipresidencialismo, do tipo francês ou português, as condições políticas encontram-se cada vez mais maduras para que o desejo se transforme em realidade”. A hora é esta.
A alternativa parlamentarista é o “plano B” de que dispõe a direita para, realizando-se as eleições, assegurar-se de que, qualquer que seja o resultado, o poder permanecerá em suas mãos, nas mãos de um Congresso corrupto, sem representação e sem legitimidade, apropriado pelo poder econômico, como assinala, com conhecimento de causa e insuspeição, o ex-ministro Delfim Netto (CartaCapital, 19/07/2017): “Todo o nosso sistema eleitoral foi montado para permitir a apropriação do poder político pelo poder econômico”.
O leitor poderá julgar que, na vigência da atual Constituição, o parlamentarismo é inviável, pois foi vencido no plebiscito de 1993, tornando o presidencialismo cláusula pétrea em nossa Carta Magna.
Ora, objeta o velho articulista: não se esqueça de 1961. Como lembramos acima, nosso Congresso, rasgando Constituição, Regimento Interno e atropelando normas parlamentares, derrogou o presidencialismo da Carta de 1946 e impôs um parlamentarismo de ocasião, em apenas duas noites.
O Parlamento que aí está já demonstrou, reiteradas vezes, desconhecer limites e pudores.
Roberto Amaral é escritor e ex-ministro de Ciência e Tecnologia
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