Não é todo dia que dá pra ligar no jornalismo da Globo e esperar conteúdo com algum grau de isenção, mas o Mais Você desta segunda-feira (23) conseguiu atingir esse objetivo ao falar da Reforma da Previdência. A apresentadora Cissa Guimarães abre o programa de variedades indagando o que todo brasileiro tem se indagado: “Será que vamos conseguir nos aposentar algum dia depois da reforma?”
Ela convidou a advogada previdenciária Marta Gueller para tratar do tema. A discussão com Gueller pode ser assistida na íntegra pelo site da Globo. A introdução didática para o tema, com um resumo das mudanças que o governo Temer propõe para o setor, também está disponível.
O quadro de 15 minutos se dispõe a sanar dúvidas do público sobre as mudanças nas regras da aposentadoria, incluindo o já clássico “Nós vamos conseguir aposentar ou morrer trabalhando?”. O que existe no pano de fundo, porém, é um equilíbrio entre o jornalismo chapa-branca da Globo, que passivamente reproduz as justificativas do governo, e a tentativa da especialista de expor as falhas na lógica governista.
Chega a ser desconfortável: enquanto o narrador da introdução declara que “sem a reforma, todo o orçamento da União será utilizado para pagar o salário dos servidores públicos e aposentados”, Gueller fala no “exagero” que a questão do déficit enfrenta.
Há outras loucuras salpicadas pela intervenção da equipe do Mais Você. Em determinado momento, o narrador chega a mencionar que, com a proposta de Temer, “serão economizados 740 bilhões de reais em 10 anos” – algo que, sem palavras bonitas, significa menos R$ 740 bilhões em transferência de renda para os aposentados, uma das categorias mais ameaçadas pela miséria.
Pouco depois, o mesmo repórter afirma que o orçamento da Previdência Social poderia superar o faturamento da União em apenas 7 anos. É um delírio sem paralelos, especialmente quando os números indicam que é justamente o governo que vem tirando dinheiro da Previdência através da DRU.
A Globo quer te convencer que há déficit na Previdência, mas ele não existe
A presença de Gueller faz o contraponto à vassalagem da Globo ao introduzir a mínima sensatez. “A Previdência é um setor que sempre vai passar por reformas. O problema é a forma como isso está sendo realizado. Passa-se a ideia de que a Previdência Social não tem dinheiro, e isso tira a credibilidade da Previdência. Essa questão do furo, do rombo, é um pouco exagerada”, argumenta a advogada, falando sobre a narrativa do déficit. “As pessoas não têm que pensar na Previdência como um regime de capitalização, não é assim. Na verdade, é um regime de solidariedade, em que vários tributos do nosso sistema passam a compor o caixa social. Quem vai pagar essa conta são os trabalhadores, sempre”, explica.
Gueller sabe do que fala. O orçamento da Previdência existe dentro da Seguridade Social, que integra aposentadorias, saúde pública e programas sociais em um só cálculo. Como explicou a professora de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Denise Gentil, esse cálculo conjunto foi positivo em quase todos os anos recentes, chegando a R$76,2 bilhões de superávit em 2013.
O que ocorre é que o Governo Federal retira dezenas de bilhões de reais dos cofres da Previdência para cobrir outras despesas, gerando o tal “rombo da Previdência”. Segundo a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (ANFIP), quando são contabilizadas as contribuições obrigatórias do governo, essa falsa dívida desaparece.
“É estranho ver uma proposta que parte do governo e que não muda um vírgula na Câmara dos Deputados. Vai ser mais esquisito ainda se também no Senado ninguém mudar nada”, diz a especialista, preocupada. “Se a gente vai ter que fazer uma reforma, ok, mas queremos discutir, queremos participar, queremos tratamento igual”.
Considerando o aceno gelado que Michel Temer fez para os representantes da sociedade civil nesta área, esta é uma via cada vez mais improvável.
Por Renato Bazan – Portal CTB