“Os contos de fadas são escritos para que as crianças durmam e os adultos despertem” (H. C. Andersen)
Numas das muitas fábulas sobre raposas e galinhas há uma que conta que, certa vez, um grupo de raposas chegou à porta de um grande galinheiro e se propôs a morar com os galos, as galinhas e os pintinhos. As raposas argumentavam que estavam exaustas das caçadas que sofriam e buscavam agora uma vida tranquila e de paz com os outros animais, viveriam em harmonia, afirmavam. Ademais, elas próprias se ofereceram para fazer todo o trabalho pesado do galinheiro.
Tal proposta causou um alvoroço entre os galináceos, uns achavam que era um engodo, outros viam até um certo ar de honestidade nas raposas (sem contar as vantagens que elas alegavam trazer!). Até que um dia, após muita discussão, decidiram aceitar o convívio com as raposas, como iguais. Após um período de tempo sem sobressaltos, com as raposas honrando o pactuado, subitamente – em uma noite em que ninguém mais se lembrava dos temores do passado – as predadoras se abateram sobre as aves e as comeram, uma a uma. Na noite sangrenta, o pobre galo garnisé, trêmulo, perguntou à raposa: “Por que vocês estão fazendo isto?” e a raposa, apresentando seu dentes, respondeu: “Porque é minha natureza…”¹
Dentre as estarrecedoras propostas do governo ilegítimo de Michel Temer, a mais perversa para os trabalhadores é a tese do negociado sobre o legislado. Com uma ação quase marqueteira, o governo e o empresariado vendem o raciocínio raso que finge ignorar a estrutural contradição que caracteriza a relação entre capital e trabalho.
Seus principais argumentos são os de que a legislação trabalhista brasileira é velha, muito detalhista, trata – por exemplo – as horas pormenorizadas em minutos. Para quem advoga a tese, a CLT não passa de um penduricalho que – em conjunto com a Justiça do Trabalho – impede negociações simples e inofensivas como o fatiamento de férias, 13º salário e a redução de horário de almoço, por exemplo. Este “excesso” de normas traz insegurança jurídica para quem contrata e, portanto, riscos ao negócio. Caso o empresariado tivesse menos normas a cumprir e menos passivos a pagar, poderia contratar mais.
Por fim, a autonomia da vontade entre empregador e empregado – sem nenhum tipo de interferência – geraria condições para a chamada “modernização” das relações de trabalho, com posições “amadurecidas dos dois lados”. Tudo parece fazer muito sentido, afinal de contas há negociações coletivas que superam muito os direitos consagrados na CF e na CLT.
No entanto, estes atraentes argumentos são falaciosos. Embora o termo negociação tenha sido consagrado, o que acontece na prática entre capital e trabalho é um embate permanente para igualar desiguais. Basta reler a história para entender que o assegurado na legislação trabalhista trouxe parâmetros civilizatórios para os trabalhadores. No Brasil, a CF a CLT e as normas internacionais são patamares mínimos, que asseguram direitos básicos para dignidade daqueles que vendem sua força de trabalho. Caso o objetivo seja, de fato, valorizar negociação que seja a partir destes balizadores.
O predomínio do negociado sobre o que está em Lei se traduz, em bom Português, pela porteira aberta: por onde passar o boi da redução do horário do almoço ou do fatiamento do 13º salário, passará a boiada da flexibilização de direitos como licença maternidade, descanso semanal remunerado, férias, estabilidade para dirigente sindical, jornada de trabalho e tantos outros chamados de “Custo Brasil”; estes ensaios perversos geralmente surgem nos momentos de crise econômica, períodos em que os direitos trabalhistas e sociais (vide PEC 241) viram alvos diretos dos ajustes fiscais.
É preciso Lei sim. O discurso de fortalecimento do sindicato e da negociação coletiva é falso. Como se negocia com o capital sem limite mínimo, sem garantis legais mínimas? A negociação coletiva de fortes e estruturadas categorias não pode servir de exemplo para justificar a autonomia de vontade entre o operador de telemarketing e uma gigante global de telecomunicações, bem como há que se considerar – sobretudo – que o Brasil é um país com profundas desigualdades regionais.
Não bastasse a proposição do negociado sobre o legislado em âmbito coletivo, há propostas para “negociação individual”, neste ponto além dos direitos, a própria representação sindical vai por água abaixo.
Por fim, nunca é demais relembrar a máxima do religioso e pensador francês Lacordaire: “Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre o senhor e o servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta” como também não convém se esquecer da natureza da raposa.
Negociado sobre o Legislado: a raposa e a galinha
“Os contos de fadas são escritos para que as crianças durmam e os adultos despertem” (H. C. Andersen)
Numas das muitas fábulas sobre raposas e galinhas há uma que conta que, certa vez, um grupo de raposas chegou à porta de um grande galinheiro e se propôs a morar com os galos, as galinhas e os pintinhos. As raposas argumentavam que estavam exaustas das caçadas que sofriam e buscavam agora uma vida tranquila e de paz com os outros animais, viveriam em harmonia, afirmavam. Ademais, elas próprias se ofereceram para fazer todo o trabalho pesado do galinheiro.
Tal proposta causou um alvoroço entre os galináceos, uns achavam que era um engodo, outros viam até um certo ar de honestidade nas raposas (sem contar as vantagens que elas alegavam trazer!). Até que um dia, após muita discussão, decidiram aceitar o convívio com as raposas, como iguais. Após um período de tempo sem sobressaltos, com as raposas honrando o pactuado, subitamente – em uma noite em que ninguém mais se lembrava dos temores do passado – as predadoras se abateram sobre as aves e as comeram, uma a uma. Na noite sangrenta, o pobre galo garnisé, trêmulo, perguntou à raposa: “Por que vocês estão fazendo isto?” e a raposa, apresentando seu dentes, respondeu: “Porque é minha natureza…”[1]
Dentre as estarrecedoras propostas do governo ilegítimo de Michel Temer, a mais perversa para os trabalhadores é a tese do negociado sobre o legislado. Com uma ação quase marqueteira, o governo e o empresariado vendem o raciocínio raso que finge ignorar a estrutural contradição que caracteriza a relação entre capital e trabalho.
Seus principais argumentos são os de que a legislação trabalhista brasileira é velha, muito detalhista, trata – por exemplo – as horas pormenorizadas em minutos. Para quem advoga a tese, a CLT não passa de um penduricalho que – em conjunto com a Justiça do Trabalho – impede negociações simples e inofensivas como o fatiamento de férias, 13º salário e a redução de horário de almoço, por exemplo. Este “excesso” de normas traz insegurança jurídica para quem contrata e, portanto, riscos ao negócio. Caso o empresariado tivesse menos normas a cumprir e menos passivos a pagar, poderia contratar mais.
Por fim, a autonomia da vontade entre empregador e empregado – sem nenhum tipo de interferência – geraria condições para a chamada “modernização” das relações de trabalho, com posições “amadurecidas dos dois lados”. Tudo parece fazer muito sentido, afinal de contas há negociações coletivas que superam muito os direitos consagrados na CF e na CLT.
No entanto, estes atraentes argumentos são falaciosos. Embora o termo negociação tenha sido consagrado, o que acontece na prática entre capital e trabalho é um embate permanente para igualar desiguais. Basta reler a história para entender que o assegurado na legislação trabalhista trouxe parâmetros civilizatórios para os trabalhadores. No Brasil, a CF a CLT e as normas internacionais são patamares mínimos, que asseguram direitos básicos para dignidade daqueles que vendem sua força de trabalho. Caso o objetivo seja, de fato, valorizar negociação que seja a partir destes balizadores.
O predomínio do negociado sobre o que está em Lei se traduz, em bom Português, pela porteira aberta: por onde passar o boi da redução do horário do almoço ou do fatiamento do 13º salário, passará a boiada da flexibilização de direitos como licença maternidade, descanso semanal remunerado, férias, estabilidade para dirigente sindical, jornada de trabalho e tantos outros chamados de “Custo Brasil”; estes ensaios perversos geralmente surgem nos momentos de crise econômica, períodos em que os direitos trabalhistas e sociais (vide PEC 241) viram alvos diretos dos ajustes fiscais.
É preciso Lei sim. O discurso de fortalecimento do sindicato e da negociação coletiva é falso. Como se negocia com o capital sem limite mínimo, sem garantis legais mínimas? A negociação coletiva de fortes e estruturadas categorias não pode servir de exemplo para justificar a autonomia de vontade entre o operador de telemarketing e uma gigante global de telecomunicações, bem como há que se considerar – sobretudo – que o Brasil é um país com profundas desigualdades regionais.
Não bastasse a proposição do negociado sobre o legislado em âmbito coletivo, há propostas para “negociação individual”, neste ponto além dos direitos, a própria representação sindical vai por água abaixo.
Por fim, nunca é demais relembrar a máxima do religioso e pensador francês Lacordaire: “Entre os fortes e fracos, entre ricos e pobres, entre o senhor e o servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta” como também não convém se esquecer da natureza da raposa.
¹http://profclaudiosilva.blogspot.com.br/2012/09/as-raposas-e-o-galinheiro-refletindo.html, em 11/10/2016, 10h16
Cristiane Oliveira é Secretária Executiva, pós-graduanda em Direito e Processo do Trabalho e Assessora da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB)
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