Caminhávamos eu e minha filha, então com 11 anos, no calçadão da Praia de Copacabana. Era um sábado de sol. Dei um passo a frente dela para atender o celular. Quando desliguei e virei para trás ela estava com os olhos arregalados e muito assustada: – Mãe, aquele homem tentou me agarrar. – disse, apontando para um homem que estava a uns 50 metros de nós, nos encarando com olhar debochado. Parei um carro de polícia. Expliquei ao policial o acontecido, ele gentilmente tentou me convencer a não prestar queixa, a relação custo/benefício não compensaria. Minha filha chorava. Hesitei. Segurei minha pequena pela mão. Entrei na viatura. Na parte de trás do carro, foi colocado o nosso agressor. Separava-nos uma grade. Ele nos xingava. O policial, lá no banco da frente, gritava para ele calar a boca. Ele foi enquadrado em “Atentado Violento ao Pudor”. Tinha outras queixas contra ele, mas não tinha ficha criminal. Não houve flagrante. “Vou detê-lo aqui mais um pouco para dar tempo da senhora ir embora em segurança. Aconselho a senhora e a sua filha a evitarem caminhar pelo calçadão por algum tempo.” Foi o que ouvi, ao deixar a delegacia.
No caso da menina de 16 anos que foi estuprada por 30 homens, um detalhe me chamou atenção: ela entrou na Cidade da Polícia escondida embaixo do próprio casaco. Não houve qualquer cuidado que garantisse a privacidade de seu acesso ao local. No mesmo lugar, estava um de seus 30 agressores, que assim como ela, seria liberado após o depoimento.
Trabalho com mulheres. Respondo pela parte médica de um hospital na Baixada Fluminense. Dentre os Serviços que gerencio está uma UTI materna com dez leitos concebida para acolher complicações de gravidez, parto e pós-parto; está também um serviço que atende violência sexual contra mulher. Lá cuidamos dos agravos extremos. Recentemente, um caso me tocou em particular: uma jovem de 25 anos deu entrada com quadro grave de septicemia (infecção generalizada). Ela havia tentado abortar. Foi injetado em seu útero alguma substância caustica. Tínhamos pouco a fazer por ela. Não houve resposta ao pesado esquema de antibióticos instituído, a opção seria submetê-la a uma cirurgia para retirada do útero doente, sítio primário do quadro infeccioso que a ameaçava. Temíamos que ela não resistisse a cirurgia, mas optamos por arriscar. Chamamos a família. Compunha o seu núcleo familiar: a avó de 80 anos e as duas filhas, de 5 e 3 anos, respectivamente. Ela, a provedora. Acolhemos aquelas mulheres, de faixas etárias diferentes, todas vítimas de uma barbárie perpetrada pelo próprio Estado, a impossibilidade de acesso ao aborto seguro. Ela resistiu. Brava guerreira! Porém, a medicação usada para manter sua pressão em níveis que lhe garantissem a vida, privou o aporte de sangue às suas extremidades. Uma complicação esperada. Suas mãos foram recuperadas com fisioterapia. Seus pés, não. Essa moça teve os dois pés amputados e não entrou para a estatística de mortalidade materna que tem no aborto clandestino uma de suas causas.
Uma média de 250 mulheres morrem a cada ano, por conta de complicações de aborto. É como se um Boeing repleto de mulheres jovens fosse derrubado todo ano. Quem alveja o avião? O Estado.
A violência de gênero está engendrada na política pública de saúde ou na falta dela. Recebo no hospital, a cada mês, 50 alunas de uma escola vizinha, que em 2015, registrou 37 alunas grávidas. Fazemos um encontro divertido, animado, onde a troca é intensa e franca. Conversamos sobre a importância do exercício responsável da sexualidade. Violência, doenças sexualmente transmissíveis e métodos contraceptivos são os tópicos que norteiam nossa conversa. Propomos a criação de uma rede de apoio entre elas para que cada uma fique atenta à outra, acima de qualquer rivalidade corriqueira. Elas atendem de forma emocionante. Impressiona perceber como é difícil o uso do preservativo na relação entre dois adolescentes. A mecânica da coisa toda pode não funcionar. É preciso ouvir quais são as reais dificuldades para que as campanhas possam de fato atingir seu público alvo e o dinheiro nelas investidos não seja vão. Quando falamos de prevenção de gravidez, o papo esquenta. 80% das gestações na adolescência são indesejadas, 56% das adolescentes que engravidam estavam usando algum método contraceptivo. O que acontece? Por que o método falha? Existe de fato uma rede básica de atenção a saúde que garanta distribuição ampla dos anticoncepcionais? Como é feita a escolha do método? A mulher é esclarecida sobre as limitações e possibilidades de cada escolha? Há oferta do contraceptivo mais indicado para cada faixa etária? O direito a não gravidez é de fato respeitado? Creio que não.
O aborto legal no Brasil é restrito. Só é permitido em casos de estupro, risco de morte materna ou em gestações de fetos anencéfalos. Uma mulher que não queira levar uma gravidez adiante usará de meios arriscados e perigosos para fazê-lo. Como fez a nossa paciente. Estima-se que um milhão de abortos clandestinos ocorrem anualmente no Brasil. 10% da razão de mortalidade materna tem como causa complicações de aborto inseguro. Para nós, profissionais de saúde, essas mortes têm rosto, têm nome, têm filhos, têm famílias. Não há tristeza maior do que comunicar a uma família a morte de uma mulher jovem. Uma mulher que, via de regra, foi duplamente negligenciada, primeiro porque não teve acesso a contracepção eficaz, segundo porque não teve acesso ao aborto seguro, proibido por Lei, salvo as exceções elencadas acima, apesar de todas as recomendações das agências internacionais de saúde e de direitos humanos preconizarem a sua legalização.
Penso na menina de 16 anos estupidamente violentada, penso na minha filha de 14 anos, na jovem de 25 anos com os pés amputados, na sua avó de 80 anos e nas suas duas filhas. Penso nas meninas da escola, nos indicadores de desenvolvimento do Brasil que retratam de forma clara essa violência tão nossa. Penso nos meninos que não recebo nos encontros sobre sexualidade no hospital (urge essa inclusão). Penso nos estupradores que divulgaram seu crime hediondo na internet, no homem que tentou agarrar a minha filha e na tranquilidade com a qual agiram. Tranquilidade essa proporcionada por um ambiente de tolerância em que a violência de gênero está presente em cada pequeno detalhe, perpetrada por múltiplos agentes, ora de forma explícita e agressiva, ora mais discreta e insidiosa. Difícil escapar.
Ana Teresa Derraik é ginecologista e obstetra, diretora da Clínica do Hospital da Mulher Heloneida Studart, no Rio de Janeiro.
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