A denúncia e o repúdio ao golpe em curso no Brasil ganharam um espaço destacado no 7º Encontro Sindical Nossa América (Esna), realizado nos dias 1 e 2 de abril em Montevidéu. O evento reuniu mais de 200 lideranças de 19 países americanos, além de convidados do Japão e Reino Unido, para debater a conjuntura e unificar a classe trabalhadora do continente na luta em defesa da integração, da soberania, da democracia e da valorização do trabalho.
Do exterior percebe-se com maior nitidez alguns aspectos fundamentais da acirrada luta política que perturba a nação brasileira. Os líderes trabalhistas reunidos no Esna sabem que o que se passa em nosso país não diz respeito apenas ao Brasil, mas ao conjunto da Nossa América e a todo o mundo.
Têm consciência de que para melhor compreender a realidade é preciso levar em conta o contexto histórico global em que se insere e se desenvolve a conjuntura nacional, bem como o entrelaçamento dos acontecimentos domésticos com aqueles que se verificam no exterior. O Brasil não está isolado no mundo, muito menos imune e alheio ao que nele se passa.
Onda conservadora
Observa-se na América Latina e Caribe a emergência de uma forte onda conservadora. Esta deu sinal nas eleições presidenciais argentinas, das quais saiu vencedor o neoliberal Maurício Macri em novembro do ano passado; na vitória da direita no pleito parlamentar da Venezuela realizado em dezembro e na derrota de Evo Morales no referendo que permitiria sua reeleição na Bolívia, em fevereiro deste ano.
A operação golpista patrocinada pela Fiesp, Temer, Cunha, Aécio, Moro, Gilmar Mendes e outros personagens da nossa raivosa direita, contra a presidenta Dilma e o ex-presidente Lula, faz parte do mesmo movimento reacionário. Não é tão difícil enxergar a conexão entre os fatos citados, aos quais cabe acrescentar os golpes promovidos contra Zelaya em Honduras (2009) e Lugo no Paraguai (2012), além da reativação da 4ª Frota americana em 2008.
Não por acaso, os países e governos que estão sendo alvos das forças conservadoras são os mesmos que lideraram a mudança do cenário geopolítico no continente ao longo do presente século e buscaram um caminho de desenvolvimento soberano e integrado, pautado pela crítica e combate às desigualdades sociais e alternativo ao neoliberalismo.
Derrotaram o projeto estadunidense de estabelecer uma Área de Livre Comércio das Américas (Alca) em 2005, criaram a Alba, a Unasul e a Comunidade de Estados Latino-americanos e Caribenhos (Celac). Esta última excluiu de seus quadros EUA e Canadá, resgatou Cuba do isolamento e se proclamou uma área de paz que rejeita intervenções externas em eventuais conflitos internos de seus integrantes.
As digitais do império
Essas iniciativas conferiram unidade e sentido histórico aos governos considerados progressistas no continente, apesar da diversidade ideológica e programática, que os inimigos da integração procuraram explorar e amplificar para dividir. Por outro lado, entraram em choque objetivamente com os desígnios do sistema imperialista internacional liderado pelos Estados Unidos, cujas impressões digitais não estão ausentes do processo de retrocesso neoliberal que entrou na ordem do dia da região.
De forma mais ou menos ostensiva – como força aberta, dissimulada ou oculta – Washington surfa na onda conservadora. Age em aliança com as burguesias locais com o propósito de derrotar e reverter o processo de integração dos países da América Latina e Caribe, destruindo ou neutralizando suas instituições, de forma a recompor sua liderança e o domínio imperialista sobre um espaço geopolítico que encara arrogantemente como um mero “quintal”. Quer impor o retrocesso neoliberal. A inação da Unasul diante do golpe branco que a direita pretende perpetrar contra Dilma é emblemático.
Não devemos ignorar a história. Os EUA estiveram por trás do golpe militar de 1964 no Brasil, de 1973 no Chile e Uruguai, 1976 na Argentina ou, mais recentemente, 2002 na Venezuela contra Chávez, e 2009 em Honduras. Os detalhes e as provas de sua ingerência por aqui provavelmente só serão evidenciados décadas mais tarde, pois a diplomacia é uma arte dissimulada que se exerce, em tais circunstâncias, nas sombras.
Afinal, conforme notou Eduardo Magalhães, “foi necessário esperar cinco décadas até que, na quebra de sigilo da CIA e dos arquivos dos EUA constassem documentos e relatórios que comprovariam aquilo que na década de 60 foi chamado de ´teoria da conspiração´: o golpe no Brasil teve a ´mão externa´”.
De todo modo, a presença das digitais do império pode ser vista nas entrelinhas de ações como a espionagem da presidenta Dilma e da Petrobras pela NSA, denunciada por Edward Snowden, bem como no financiamento das manifestações golpistas de “coxinhas” por empresas estadunidenses. Suspeita-se que a espionagem da Petrobras serviu de base para a operação Lava-Jato, cujo comandante, Sergio Moro, andou mantendo ligações perigosas, ainda não esclarecidas, com o Departamento de Estado americano.
Ofensiva contra o Brics
Não é só o processo de integração dos países latino-americanos e caribenhos que está na mira do império. Simultaneamente, de forma a cada dia mais explícita, verifica-se uma feroz ofensiva econômica, ideológica, política e militar do imperialismo, e em particular dos EUA, contra países do Brics. Neste sentido é preciso observar as conexões entre a crise política no Brasil com fatos como a demonização do presidente russo, Vladimir Putin, o golpe de extrema direita e os conflitos na Ucrânia, as sanções contra a Rússia e as recorrentes provocações contra Pequim no Mar da China.
O Brics – com seu seu novo banco de desenvolvimento e Arranjo Contingente de Reservas (criados na cúpula do bloco de 2014 em Fortaleza) – lançou as bases para uma nova ordem mundial e é, atualmente, o mais sério desafio à hegemonia dos EUA e do combalido padrão dólar no mundo.
Através do Brics, do banco asiático de infraestrutura e da nova rota da seda o mundo ingressou num processo de transição geopolítica que abre caminho a uma nova ordem internacional. É de se imaginar que Washington fará de tudo para sabotar e interromper este movimento, de forma a preservar e ampliar sua hegemonia. Os acontecimentos em curso no globo são em grande medida determinados por tal estratégia. Parece fora de dúvidas que um golpe contra Dilma no Brasil pode criar embaraços para o Brics.
Torna-se sensível também a convergência de interesses que promovem uma crescente unidade e interação entre o Brics e Celac. Para o conjunto dos países que compõem a Comunidade a China já é uma economia maior e mais relevante do que os EUA tanto do ponto de vista comercial quanto financeiro. É a principal parceira do Brasil, Argentina e outras nações. Seus investimentos e projetos de investimentos na Celac somam centenas de bilhões de dólares. Brics e Celac são instituições cujos caminhos, entrelaçados, convergem para uma mesma direção na transição para uma nova ordem mundial.
Finalmente, por falar em golpe, não custa lembrar que os EUA acumularam extenso Know-how em matéria de arruaça em terras estrangeiras, desestabilização de governos e golpes fascistas pelo desde a infame intervenção contra o governo democrático de Mohammed Mossadegh em 1953 no Irã. Mascarando seus gestos com a retórica da defesa da democracia e dos direitos humanos, o império também está por trás das “revoluções laranjas” no leste europeu, todas voltadas contra a Rússia, do assassinato de Kadafi na Líbia, do financiamento do terrorismo e da guerra civil na Síria. Só por ingenuidade ou criminosa cumplicidade (como é o caso da mídia burguesa no Brasil) é que se pode imaginar que esteja indiferente à operação golpista em curso por aqui.
Umberto Martins é jornalista e assessor da CTB
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