Foi indigesto para o povo de santo o nome escolhido pela Polícia Federal para batizar a fase da vez na Operação Lava Jato. Além da disposição para investigar a teia de escândalos de corrupção, que começou na Petrobras e ninguém sabe onde vai dar, a instituição ganhou reconhecimento nos últimos tempos pela criatividade na denominação das diligências. Na mais recente, uma iguaria famosa da culinária afro-brasileira foi parar nas manchetes ao ser usada como sinônimo de propina por um dos investigados. Não prestou. Horas depois de a PF anunciar a Operação Acarajé, na segunda-feira, o Coletivo de Entidades Negras (CEN) publicou nota de repúdio à designação. Ontem, a Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR) enviou ofício à Secretaria Nacional de Segurança Pública, à PF e ao Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial e dos Direitos Humanos pedindo a imediata troca do nome. Os religiosos não aceitam que um órgão público tenha ratificado a associação de um alimento sagrado do candomblé à prática criminosa.
“Assimilar essa expressão sacra ao crime, especialmente à corrupção, ofende religiões e religiosos de matriz africana. Cidadãos, no afã da comunicação criativa, poderiam errar, pedir desculpas, reconhecer a má criação intolerante e insensível. Seria um caso da vida privada. Ao Estado e seus entes não é permitido cometer tais erros”, diz trecho do documento, assinado pelo babalaô Ivanir dos Santos, representante da Comissão. Até a noite de ontem, nenhum dos órgãos tinha respondido.
O acarajé é ícone, não só da gastronomia, mas também das tradições religiosas, históricas e culturais da Bahia. E do Brasil. Em 2004, foi incluído no Livro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Desde então, o ofício das baianas do acarajé está classificado como bem imaterial do país. Diz a certificação do Iphan, órgão federal como a PF:
“A receita tem origem no Golfo do Benim, tendo sido trazida ao Brasil com a vinda de escravos da região. No início, todas as pessoas que produziam e comercializavam o acarajé eram iniciadas no candomblé, numa prática restrita às mulheres, em geral filhas de santo dedicadas ao culto de Xangô e Iansã (Oyá). Durante o período colonial, as negras libertas ou negras de ganho preparavam os quitutes e saíam às ruas de noite, para vendê-los, dando origem ao costume”.
No ano passado, uma batalha judicial foi travada na Bahia, porque representantes de igrejas neopentecostais tentaram mudar o nome do alimento para Bolinho de Jesus, e assim roubar a identidade com as religiões de matriz africana. O Iphan entrou na briga, defendendo lei específica para reservar a denominação ao alimento produzido nos moldes do que a legislação internacional chama de expressões culturais tradicionais. Mesmo vendido como quitute em tabuleiros e bancas na rua, o acarajé (que em iorubá significa “comer bola de fogo”) é preparado seguindo preceitos religiosos.
“Essa forma tradicional (de preparar o acarajé) é um fazer ligado à vinculação com religiões afro-brasileiras e que, muitas vezes, se desdobra como ofício. Há indumentária, procedimentos, rituais, tipo de produto”, declarou ao jornal “Correio da Bahia”, em junho de 2015, a antropóloga Maria Paula Adinolfi, autora dos argumentos jurídicos para proteção do uso do nome pelo Iphan.
Militância pressupõe defesa intransigente de pontos de vista. É por meio dessa atuação enfática – para tantos, exagerada – que reflexões secundarizadas ganham espaço no debate social. Contudo, em vez de compreender as razões históricas que levaram representantes das religiões de matriz africana a criticar a PF, palpiteiros de redes sociais preferiram desqualificar, ridicularizar, debochar dos argumentos. Houve quem falasse em “fundamentalismo do axé”, num evidente desconhecimento sobre o significado do primeiro termo combinado à provocação gratuita aos muçulmanos.
A miopia em relação às tradições afro-brasileiras tem origem no regime escravocrata do Brasil Colônia e se estende aos dias de hoje, em razão do desprezo do sistema educacional pelo ensino da história e da cultura negras no país. Em janeiro de 2003, o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou a Lei 10.639, que determina o ensino das duas disciplinas em escolas de níveis fundamental e médio, públicas e particulares. De lá para cá, quase nada mudou. São raros os estabelecimentos em dia com a legislação.
Para piorar, o ensino religioso nas escolas, em geral, se relaciona mais com a catequese (católica ou neopentecostal) do que com o ecumenismo. No Rio, pesquisa do Grupo Ilé Oba Òyó, da Pós-Graduação em Educação da Uerj, descobriu que, de 500 docentes em religião admitidos por concurso em 2004, 68% eram católicos e, 26%, evangélicos. No recém-divulgado Relatório de Combate à Intolerância Religiosa, 5% das agressões por credo partem de professores. Uma ação direta de inconstitucionalidade pedindo que o ensino religioso em escolas públicas seja de natureza não confessional tramita no Supremo Tribunal Federal. Caberá ao STF determinar que modelo de Estado laico o Brasil terá de praticar.
Por desconhecimento, preguiça ou má-fé, os brasileiros assentaram-se no mito da democracia racial, com a conivência da escola e dos livros e da produção audiovisual e do poder econômico. Desde sempre, estudamos a Segunda Guerra Mundial. Fomos treinados (corretamente) a farejar as barbaridades do nazismo e a repudiá-lo. A ponto de o Ministério Público do Rio conseguir no Tribunal de Justiça a proibição da venda e o recolhimento no país de “Minha luta”, livro-manifesto de Adolf Hitler, sob o argumento (justificado) de fomentar a intolerância. Para violações às tradições e à história do povo negro – e também dos indígenas – fechamos os olhos.
Flávia Oliveira é jornalista. Especializou-se na cobertura de economia e indicadores sociais. É colunista do jornal O Globo e comentarista no canal GloboNews. É membro do Conselho da Cidade do Rio de Janeiro.
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