Artista carioca foi uma das 150 pessoas convidadas a fazerem testes genéticos e visitarem o país de seus ancestrais
Entre os séculos 16 e 19, o Brasil recebeu ao menos 4,8 milhões de africanos escravizados, todos forçados a abandonar sua identidade ao embarcar para o país.
A produtora Cine Group convidou 150 brasileiros a fazer um exame de DNA para identificar o local de origem de seus antepassados africanos.
Após os resultados, a produtora acompanhou as viagens de cinco participantes às regiões de seus ancestrais.
As gravações darão origem à série televisiva Brasil: DNA África, a ser lançada nos próximos meses (a produtora ainda negocia os direitos de transmissão). A BBC Brasil entrevistou dois participantes sobre a experiência.
Leia abaixo o relato da artista e empreendedora carioca Juliana Luna, de 29 anos, que se descobriu descendente do povo iorubá, da Nigéria:
“Na Bolívia, onde vivi parte da minha infância, existe uma superstição engraçada. Quando veem um negro, muitos têm o costume de beliscá-lo. Eles acham que isso dá sorte. Voltava da escola cheia de beliscões, e um dia minha mãe teve até que conversar com o diretor.
Mesmo assim, só comecei a questionar para valer minhas origens muito mais tarde, aos 17, quando morava no Rio e raspei meu cabelo. Ele era bem longo, resultado de um processo de relaxamento.
Foi um alívio. Minha mãe achou que eu estava perturbada e quis me levar ao psicólogo. Eu disse que precisava entender quem era.
“Na adolescência, quando dizia que era negra, as pessoas respondiam: ‘Imagina!’, como se isso fosse algo ruim”
Deixei o cabelo crescer naturalmente e passei a me identificar como negra. Na adolescência, eu me via como parda – até porque, quando dizia que era negra, as pessoas respondiam: ‘Imagina!’, como se isso fosse algo ruim.
Quando o exame no projeto Brasil: DNA África mostrou que eu descendia dos iorubás, da Nigéria, não acreditei. Já fazia algum tempo que eu vinha dando oficinas sobre como montar turbantes. E quem me ensinou a fazê-los foi uma família iorubá que conheci em Boston (EUA).
Tinha ido passar um feriado na casa de um amigo e, quando vi aquelas mulheres maravilhosas, com turbantes bombando, pensei: ‘preciso disso na minha vida’.
Eu estava numa situação difícil, vivendo um relacionamento tóxico. Quando colocava o turbante, ele ia me enchendo de força, me revigorando de uma forma que não conseguia entender. Era a minha coroa.
Na Nigéria, entrevistei o músico Femi Kuti, um cara que usa sua arte como forma de militância. Ele disse que o povo africano não teve tempo de chorar, de viver o luto pelas pessoas sacrificadas pela escravidão. Comparou com o caso dos judeus, que sofreram o Holocausto mas depois tiveram uma fase de cicatrização e reconciliação.
Na Alemanha, toda vez que muda o primeiro-ministro (chanceler), ele tem de pedir perdão pelo massacre dos judeus. Não houve isso no nosso caso, tudo sempre foi jogado para baixo do tapete.
Também entrevistei o Wole Soyinka, primeiro negro a ganhar o Nobel de Literatura. Ele tinha uma voz superforte – parecia um deus – e me disse que a única coisa que pode fazer com que a reconciliação aconteça é a arte, que só ela pode construir uma ponte entre universos tão quebrados. Porque a arte cria reverberações e é uma linguagem que todo mundo consegue entender.
Fiquei muito tocada com as conversas e pensei que, com minha arte com os turbantes, estou criando micro-reverberações. Porque eu não o ensino só para mulheres negras, mas também para as brancas.
Quando fui convidada ao programa da Fátima Bernardes, na Globo, fiz um turbante na cabeça dela. As pessoas ficaram bem incomodadas não só pelo fato de que ela, representante da elite branca brasileira, havia usado um turbante, mas porque eu, uma negra, tinha feito o turbante nela.
Eu vi aquilo como um ‘hackeamento’, uma forma de construir um diálogo, para que a gente avançasse a outro patamar.
Muitas vezes somos agressivos e ficamos nessa dualidade você-eu, mas nem sempre o conflito nos ajuda a crescer. Minha forma de hackear o sistema foi fazer um turbante na elite branca em rede nacional. Sem agredir, só educando.
A viagem para a Nigéria me despertou para a importância de nos conectarmos com nossa ancestralidade. Lá aprendi que, na filosofia iorubá, todos pertencemos a uma linha, costurada e conectada a tudo que remete aos ancestrais.
Por isso, quando uma criança nasce, não é nomeada no primeiro dia. Os mais velhos se reúnem e perguntam aos espíritos dos ancestrais como ela deve se chamar. O nome é a missão de vida daquela pessoa.
Lá também ouvi que, independentemente da cor da pele, somos todos conectados e existe um fluxo de consciência coletiva. Não é porque não sou judia que não vou sentir empatia pelo que os judeus sofreram no Holocausto. Quando você se coloca no lugar do outro, deixa de ser você e passa a ser o outro.
É isso o que nos falta na questão do negro. Se cada um buscar essa conexão, assumir sua responsabilidade e pedir perdão, veremos que estamos todos no mesmo barco.”
Fonte: BBC Brasil, por João Fellet. Fotos: DivulgaçãoImage copyrightDivulgacao