A vivacidade do feminismo ganhou as ruas do Brasil na última semana com músicas, gritos de ordem, irreverência e muita resistência: nossas vozes ecoaram, alimentaram e levantaram ao alto a chama de nossa revolução cotidiana: a luta pelo direito ao nosso próprio corpo, à nossa própria vida. Nos unimos em multidão para lembrar que não desistimos nem um só minuto do nosso direito de escolher, que permanecemos incendiárias dos sistemas que nos oprimem, que somos detentoras e multiplicadoras de valores e práticas libertárias.
Mobilizadas pelo mote nacional #MulheresContraCunha, nós, mulheres jovens, mulheres negras, estudantes, trabalhadoras, mulheres urbanas, mães, filhas, lésbicas, partidárias, anarquistas, artistas, com todas as cores, caras e coragem, unificamos nossas diversas narrativas para o enfrentamento do projeto de lei 5069, de autoria do reacionário e machista deputado Eduardo Cunha, e tudo que ele representa (tanto o PL quanto o autor) à nossas vidas.
Quando o PL surgiu e todo o terror sobre os retrocessos que propõe, sobretudo no que diz respeito à profilaxia de gravidez em casos de violência sexual (restringindo o uso da pílula do dia seguinte, burocratizando ainda mais o acesso aos equipamentos de saúde e criminalizando os e as trabalhadoras), não imaginávamos o impacto positivo que esta aberração política podia gerar: a retomada de fôlego do debate sobre legalização do aborto, combate à violência sexual e descriminalização das mulheres no Brasil.
Não que este debate tenha adormecido um só segundo. Todos os dias, mulheres resistem à situações de violência. Todos os dias, redes de solidariedade feminista se formam e trabalham para reduzir os danos dos abortos clandestinos e inseguros; todos os dias, a cultura do cuidado (imposta para nós, porém ressignificada por nós) faz com que limpemos o sangue de nossos estupros e curemos permanentemente nossas feridas no âmbito micro-político.
Além disso, os movimentos sociais de mulheres organizadas em diversas frentes também são protagonistas de uma luta que não é de agora, mas se segue ao longo dos anos. Há muito, acumulamos força e tensionamos as ofensivas do patriarcado racista e capitalista que organiza e ainda reduz nossos corpos e nossas vidas. A Frente Nacional pelo fim da Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto é exemplo de como essa luta é permanente e está inserida em uma teia de ações das mulheres que lutam pela emancipação no Brasil.
No entanto, não podemos deixar de nos encantar com o impulso revolucionário que tomou as ruas de grandes capitais do país nesta semana, levando milhares de mulheres a protestar contra o conservadorismo e em favor de um novo modelo de sociedade. De identificar o quanto estas novas linguagens, possibilidades de interação, de constituição de campo político, apontam novas condições materiais e simbólicas de disputa de projeto de país, a partir da perspectiva das mulheres.
A internet e seu potencial de articulação
Tudo começou com um evento no Facebook e terminou com milhares de mulheres nas ruas? Ou será que começou com milhares de mulheres na rua e terminou com milhares de compartilhamentos de fotos, vídeos e opiniões no Facebook? Nem um nem outro. Na minha opinião, esse processo tá longe de terminar e, como já dissemos não começou agora. Minha provocação, no entanto, é para o quão importante será a disputa articulada entre as ruas e as redes sociais na consolidação do Feminismo enquanto um pressuposto revolucionário e grande catalisador de mobilização social no Brasil e no mundo.
“O conservadorismo não irá nos calar” era para ser um evento digital, mas acabou canalizando a inquietude e revolta de milhares de mulheres no Rio de Janeiro. Em minutos, mais de mil confirmadas e muitas indagando na página do evento sobre qual ação aquilo desdobraria. Logo em seguida, outros estados começam a aderir a ideia e criar eventos virtuais chamando para ações de rua, com os motes #ForaCunha e #MulheresContraCunha.
Dois anos após as jornadas de junho, parece que um filme se repete. Mas só parece! Embora avaliemos que junho traz a tona um novo ciclo de mobilizações, articulações e metodologias políticas da juventude brasileira, e que o conjunto de pautas evidenciadas ali eram de teor progressista, o que se tem chamado de #PrimaveraDasMulheres têm importantes diferenças com relação às mobilizações de junho.
A primeira delas é o método: o movimento protagonizado por mulheres tem uma outra linguagem e uma outra abordagem. A solidariedade, organização e cuidado com que, enquanto grupo social, costumamos tratar das coisas, faz da #PrimaveraDasMulheres uma novíssima e revolucionária experiência de mobilização de massas.
Esta capacidade ganha destaque e vira principal cara pública de uma reação legítima dos setores populares e democráticos do país, às movimentações conservadoras e autoritárias de Eduardo Cunha à frente da Câmara de Deputados. Não está desconectada, no entanto, das 70 mil margaridas que marcharam em Brasília por um novo modelo de desenvolvimento, das milhares de negras que vão marchar em novembro pelo bem-viver e contra o racismo, das marchas do empoderamento crespo Brasil adentro, das milhares que construíram a Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres em todas as regiões do país.
Esta capacidade ainda tem tudo a ver com as pequenas gigantes revoluções diárias que cada mulher deste país constrói em seus territórios: as donas de casa, as donas da rua, as mães das periferias, as sacerdotisas, as camponesas, as nossas avós, as nossas irmãs, as nossas futuras netas.
A importante diferença da #PrimaveraDasMulheres de Junho é a capacidade de coesão política na ação e na narrativa que os grandes atos apresentaram nas ruas. Eu acompanhei os atos no Rio de Janeiro e em São Paulo e me impressionei com a harmonia de sons, palavras e pessoas nestes atos, mesmo em uma diversidade arrabatadora: havia unidade na ação, estratégia coletiva, comunicação fraterna entre as pessoas.
Não que estas características não estivessem também presentes em junho. Mas neste caso, falamos que esta nova cultura política é o tom principal da #PrimaveraDasMulheres e representa uma enorme mudança de paradigma para a organização de frentes de ação direta, mas também quem sabe de um novo bloco histórico progressista dirigido pelas mulheres no Brasil.
As Revolução Feminista em todas as estações
Sabemos que o PL 5069 vem no bojo de um conjunto de ações conservadoras do Congresso Nacional, com protagonismo de Cunha: redução da maioridade penal, estatuto da família, ofensiva ao debate sobre gênero e diversidade nas escolas. Sabemos também do impacto cruel de cada uma destas ações na vida das mulheres. Sabemos, portanto, que do mesmo modo que a ofensiva patriarcal, racista e capitalista vem articulada e multifacetada para cima de nós, deveremos organizar uma estratégia articulada e multifacetada para cima deles, e que a batalha não será de curto prazo. Não há de ser a luta de apenas uma estação, como nunca foi.
Precisamos diagnosticar, para além do nosso auto-encantamento, os complexos desafios colocados para nós, mulheres jovens, que vivenciamos esse momento sob o intenso lugar de fala de quem teve e tem a oportunidade de protagonizá-lo.
Eu acho que o principal desafio é construir uma linguagem cada vez mais universal entre as mulheres, a partir dos valores do feminismo. Se somos o grande sujeito revolucionário da pós-falência dos regimes hegemônicos em crise (capitalismo, patriarcado, racismo), precisamos saber nos comunicar entre nós para amplificar nossa voz. E nós somos muitas, repito: intelectuais, estudantes, militantes, blogueiras, ativistas, mas também, E SOBRETUDO, agricultoras, empregadas domésticas, encarceradas, em situação de prostituição, vítimas de violência doméstica, clandestinas. A construção da solidariedade pressupõe a construção de espaços onde todas estas mulheres se sintam à vontade para falar de feminismo e de construir um novo mundo a partir de suas próprias experiências.
A segunda coisa é estarmos atentas e fortes às investidas que os opressores tentarão contra nós no sentido de esvaziar, descaracterizar e cooptar nosso movimento. Cada passo libertador que darmos, acirrará ainda mais a disputa com o patriarcado racista e capitalista, e isso significa aprofundamento da violência e momentos de grande tensão com os setores conservadores. Devemos seguir convictas, determinadas e organizadas para que não sejamos diluída em narrativas que nos dividam, hierarquizem e nos impeçam de construir esta grande linha de frente rumo a superação dos problemas históricos e também conjunturais de nosso país.
Seguiremos lutando pela legalização do aborto, descriminalização das mulheres, por uma nova política de drogas, por um novo modelo de segurança pública, pela desmilitarização de nossos corpos e territórios, pela liberdade sexual e afetiva, pela diversidade, pela pluralidade religiosa e laicidade do estado, por um novo modelo de desenvolvimento, um novo marco regulatório das comunicações, uma nova linguagem que não nos vulgarize nem infantilize. Seguiremos reinventando rodas, reescrevendo a história, construindo nossas próprias narrativas e alternativas ao que está colocado.
Questionamos um sistema inteiro e por isso, construir o feminismo significa desconstruir toda a matéria-prima social da qual somos compostas, no macro e no micro-político. Reconstituir as relações mais íntimas com nossas companheiras irmãs, mas também compreender cada vez mais a dimensão da disputa coletiva de um projeto antipatriarcal, antirracista e anticapitalista.
Até que todas sejamos LIVRES!
Bruna Rocha é estudante de Belas Artes da UFBA e diretora de Mulheres da União Nacional dos Estudantes.
Os artigos publicados na seção “Opinião Classista” não refletem necessariamente a opinião da Central dos Trabalhadores e Trabalhadoras do Brasil (CTB) e são de responsabilidade de cada autor.