Depois do sucesso fora do Brasil o longa “Que horas ela volta?”, da paulistana Anna Muylaert está em cartaz nos cinemas nacionais. O filme já foi premiado no Festival de Berlim com Prêmio do Público e no Sundance Film Festival com Prêmio Especial do Júri, concedido às atrizes Regina Casé (Val) e Camila Márdila (Jéssica). ‘Que horas ela volta?’ fala sobre maternidade, entre outras questões e mostra a vida de uma doméstica pernambucana que criou o filho dos patrões enquanto trabalhava para sustentar a sua própria filha.
Nesta quinta-feira (10) o longa foi escolhido para representar o Brasil na disputa pelo Oscar 2016 de melhor filme em língua estrangeira. Com o anúncio, a cineasta se torna a primeira mulher em 30 anos a ter seu filme reconhecido pelo Ministério da Cultura. Muylaert é diretora, roteirista e coprodutora do filme que reforça seu protagonismo feminino na centralidade dos personagens mulheres e na presença maciça delas assinando a equipe técnica. Em plena correria de divulgação do longa Anna Muylaert atendeu o site da UNE por email, após sua participação em um debate do filme no Cine Belas Artes na sua cidade natal São Paulo.
Muylaert falou sobre sua carreira na sétima arte, sobre as dificuldades em lidar com o machismo desde sempre e os ataques que tem recebido proporcionalmente ao sucesso que o filme alcança. “Os homens não sabem bem como lidar. Preferem achar que eu sou bobinha e que se o filme está indo tão bem deve ser por causa de algum homem – seja lá qual for. Eles têm dificuldade em legitimar o meu sucesso”, desabafa. A diretora falou ainda sobre avanços sociais no Brasil e como a maternidade a ajudou a ser a profissional que ela é hoje. Confira:
Por que você escolheu o cinema para sua vida?
Anna Muylaert: Sempre gostei de música, de ler, de escrever e de tirar foto. Uma hora percebi que tudo isso junto seria cinema. Nunca quis fazer outra coisa.
As mulheres já são mais em número hoje dentro das universidades. Como era quando você fez a sua graduação?
Na minha época, tinha homens e mulheres, mas não saberia quantificar. Eu já me sentia de tal maneira de igual pra igual que isso nem era uma questão pra mim.
As relações de trabalho no cinema refletem exatamente a sociedade machista que vivemos ou por ser um espaço artístico a desigualdade é menor?
Olha a minha carreira é longa. Quando comecei na ficção na TV, eu podia fazer o trabalho, mas não podia levar o crédito. Isso foi uma grande luta. Quando comecei a conseguir o crédito, ganhava 10 vezes menos que meu parceiro. Fiz análise por anos para conseguir exigir equiparação de trabalho. Quando consegui isso achei que estava tudo resolvido. Depois percebi que no mercado da televisão – regido por regras machistas – eu sempre sou preterida, apesar da minha experiência. Os canais sempre preferem apostar num jovem talento masculino, normalmente bem apessoado e simpático. Se o cara não trabalhar bem, cai. Mas dificilmente chamam mulheres para dirigir séries, por exemplo. No cinema eu monto minha própria equipe e não sinto presença do machismo. Mas agora que meu filme está tendo destaque, nunca senti tanto o peso desta visão de mundo. Quando uma mulher brilha, os homens ficam muito incomodados. Tenho levado rasteiras, broncas e vivido situações surreais de bullying por causa do sucesso do meu filme.
No debate você falou que no começo da sua carreira topava trabalhar de graça para ganhar experiência, depois ganhar menos e apenas quando adquiriu confiança começou a exigir igualdade nos seus trabalhos. Queria que você comentasse um pouco como foi lidar com essas questões.
Acho que a mente feminina é por natureza e também por cultura mais humilde e talvez mais paciente que a mente machista, coronelista. Quando comecei minha carreira eu tinha certeza que queria seguir nesse caminho e não tinha pressa. De modo que eu topava fazer algo grande ganhando pouco e sem crédito como uma forma de aprender a fazer o ofício em vez de tentar conseguir postos de poder antes que eu fosse segura naquele campo. Com questão de crédito eu fui muito sacaneada no começo, mas também tive muita paciência. Mas o que aprendi nesses anos todos foi que o homem pode roubar seu crédito, mas ele não vai andar muito longe… E você pode não ser reconhecida por um trabalho que fez, mas se você sabe fazer, uma hora as pessoas vão perceber.
Quais as dicas que você daria para as estudantes que querem fazer carreira no cinema?
Quando penso em conselhos para jovens cineastas, não consigo pensar em termos de gênero. Acho que a coisa é difícil para todos. É preciso ter certeza do que se quer – porque o caminho é longo e árduo. E uma vez escolhido o caminho, estudar, estudar, estudar, aprimorar. Inventar sistemas de trabalho que ajudem o desenvolvimento profissional. Ter paciência para colher os frutos. E no caso dos diretores: além de aprender aonde por a câmera, ter algo a dizer! Isso é mais que fundamental. Ter uma visão de mundo. E é claro que ninguém tem uma visão de mundo se não viveu as coisas. Portanto eu acho que para ser um bom cineasta, a pessoa tem que ser uma pessoa interessada e interessante. A vida em si é o manancial de filmes e não o contrário. Quem vai fazer cinema pensando no glamour está enganado e não irá muito longe.
No filme a personagem Jéssica, filha de uma empregada, passa no vestibular da USP, principal universidade do país e essa é uma possibilidade que tem total verossimilhança hoje. Como você acha que a inserção de pessoas como ela vão influenciar na universidade e depois no mercado de trabalho?
Acho que o brasileiro é um povo muito interessante e criativo. Na hora que o Brasil for uma nação democrática socialmente falando – e estamos caminhando para isso – todos teremos a ganhar. Sem dúvida é melhor que todos os cidadãos tenham as mesmas condições de estudo, do que apenas uma elite que se perpetua no poder em todos os sentidos.
Você disse que agora que está em destaque está sentindo mais o machismo na pele. Porque é tão difícil os homens ficarem na sombra? Como você está enfrentando essas situações?
Acho que o machismo é uma cultura, é como um jogo de regras que todos jogamos. Essa cultura que hipervaloriza valores como poder, sucesso e riqueza. E normalmente quem obtém os grandes postos de poder, sucesso e riqueza são os homens. Fora claro, tem as áreas onde a mulher pode brilhar: as atrizes, as cantoras e as vedetes. Mas fora disso, as lideranças são quase todas masculinas. São homens de gravata que podem até ser heterossexuais, mas se encantam mesmo é com outras gravatas. Então de repente meu filme vendeu para 25 países, fez uma soma grande de dinheiro e a partir daí eu entrei num hall onde mulher só entra como assistente. E eu sou diretora, roteirista e coprodutora do meu filme. Então os homens não sabem bem como lidar. Preferem achar que eu sou bobinha e que se o filme está indo tão bem deve ser por causa de algum homem – seja lá qual for. Eles têm dificuldade em legitimar o meu sucesso. Até agora estou enfrentando tentando convencer, que é meu jeito de atuar. Eu não saberia devolver uma rasteira com outra rasteira. Mas nem todos estão abertos a ouvir. De modo que acho que terei que desenvolver certa agressividade para conseguir ser ouvida no mundo dos coronéis.
Conciliar uma profissão de sucesso à tarefa de criar um filho é possível? Você é a prova disso?
Sim, claro que é possível. Aliás, acho que eu jamais teria esse sucesso ou faria esse filme se eu não fosse mãe. Ter sido mãe me ensinou muitas coisas, principalmente a aumentar minha capacidade de trabalho. Nesse sentido, tento me organizar e cumprir com todas as tarefas de casa e do trabalho. A meditação me ajudou muito também. Valorizar o silêncio e os momentos de não-ação.
Você acha que através do seu filme fez um relato de um Brasil que daqui a pouco tempo não existirá mais? Estamos avançando?
Sim, acredito que sim. A Val é um bicho em extinção.
Seu filme é feminista sem levantar bandeira e contestador sem maniqueísmos. Essa é sua forma de engajamento?
Acredito que sim. Eu não sou política, eu sou uma artista. E cito aquela frase do Aristóteles: a finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas, não copiar sua aparência. Se você faz um filme que consegue revelar coisas que todo mundo vive, mas estão ocultas – de certa forma você se aproxima da política, mas de um modo totalmente diferente, né?
Fonter: UNE