Em 2011, o rapper paulista Criolo lançava o disco Nó Na Orelha, que poderia ter sido o fim de sua carreira após mais de 20 anos de estrada, pois o dinheiro ganho com shows já não chegava para pagar as contas. O sucesso foi enorme. Quatro anos depois, Criolo faz a segunda turnê internacional de Convoque Seu Buda, seu terceiro álbum.
Preocupado com a situação do povo brasileiro, Criolo afirma que a redução da maioridade penal é apenas uma regulamentação do que já é feito: “Desde que eu me entendo por gente, vão para favela assassinar jovens”.
A forma peculiar de se expressar, recheada de metáforas, chegou a fazer um tradutor francês desistir de auxiliá-lo em uma entrevista quando passou por Paris. A CartaCapital, ele também fala sobre a polêmica participação na turnê Nivea Viva Tim Maia com Ivete Sangalo, a turnê europeia e sua trajetória pessoal.
Carta Capital: Como está o desgaste físico após tantas viagens de trem e avião na Europa?
Criolo: Ah, meu filho, para quem é acostumado a acordar quatro horas da manhã para procurar emprego, saindo lá do Grajaú para ir pra Santo Amaro ou pro centro, atravessar a Europa de trem carregando umas malas de roupa e equipamento musical é uma honra muito grande.
CC: Você já comentou que a situação do povo brasileiro vem melhorando lentamente. Como enxerga o momento político atual?
C: É revoltante, porque a proporção dessa melhora não está de acordo com o tanto que nosso povo luta. Os governantes ficam com o freio de mão puxado. Eles fazem questão de nos transformar em número e força para que a máquina se movimente. E, mesmo assim, eles puxam o freio de mão e vão usando da nossa energia quando acham que é importante.
CC: Qual é a sua opinião no debate sobre a redução da maioridade penal?
C: Já foi reduzido, só faltou colocar no papel. Desde que eu me entendo por gente, vão para favela assassinar jovens. Só estão regulamentando. Desde pequeno, a gente sabe: ‘ó, o muleque ali foi assassinado, meteram bala nele’. Seja pela força que representa o governo, seja pela mazela social ligada à desventura das coisas horríveis que são oferecidas a nossos jovens. Isso já foi taxado.
A gente luta para que exista uma mudança de concepção. Porque não é só ensinar que um mais um é dois, que o Ceará fica no Nordeste e Porto Alegre fica no Sul, mas dar um ambiente de construção de texto, propício para que todo jovem brasileiro possa ter ambiente de discussão. Senão, não vai adiantar nada. A gente luta para que exista uma compreensão melhor de ser humano em nosso país.
CC: Você acredita que essa medida atinja em maior escala a população pobre?
C: Afeta todo mundo, porque ódio só gera ódio. Até agora, não vi ninguém querendo trabalhar com a causa, só querem trabalhar com efeito para ganhar ibope. É óbvio que existe uma guerra, não vamos virar as costas e fingir que não está acontecendo uma guerra civil no país. Mas o rap vem falando isso há mais de 40 anos no Brasil. E o pessoal vem falar disso agora?
Que bom que estão falando, não vou tirar ninguém. Opa, demorô, vamos falar, discutir, conversar. Se educação é comércio e saúde é comércio, você já vê por aí. O tanto que os caras roubam da gente todos os dias, era para todo mundo ter uma situação maravilhosa no Brasil, ninguém estar passando essa dificuldade toda. Eu nem diria dificuldade, passar dificuldade é uma coisa, você lida com isso. Passar por humilhação, aí é fogo.
CC: Você defende que a falta de diálogo é um de nossos maiores problemas. Esse quadro tem piorado?
C: Mas não só a falta de diálogo quando surge um tema. Uma falta de diálogo global, desde a concepção do ser, é necessário criar um ambiente que não seja só para passar a nossas crianças que um mais um é dois e questões de geografia. Mas esse perceber ser capaz de construir diálogo. Perceber-se construção de pensamento.
Não é só diálogo na hora que o bicho tá pegando, porque, na hora que a bala tá comendo, como você vai resolver? Vem falar para mim que uma poesia vai ser uma solução? E também é. A força da poesia é algo brutal. Mas, na hora que o bicho tá pegando, não adianta trazer flores. A verdade é muito dura. Tudo que está acontecendo já foi arquitetado, alguém imaginou que iria ser desse jeito e como se aproveitar da situação.
CC: Agora, uma pergunta delicada…
C: Toda pergunta é delicada porque uma coisa é eu dar minha opinião para você que tá perguntando. Outra coisa é minha opinião estar no mundo e alguém escutar sem ter perguntado. Sua opinião só importa se alguém pergunta. É a premissa, né? É lógico que todo pensamento é interessante quando visitado, mesmo por acidente. Mas a premissa é que estou respondendo a você questões da tua mente. Então, toda questão é ou não delicada. Pode perguntar, meu filho.
CC: Parece um pouco complicado, dentro do rap, crescer no meio musical e alcançar novos públicos. Quando você topou o projeto com a Ivete, promovido pela Nivea, Viva Tim Maia, foi acusado por fãs do gênero de ter se vendido. Como viu essa situação?
C: Acho que conflito de ideias só faz a gente crescer. Acredito que as pessoas têm que ter liberdade para se expressar. Fui convidado para participar de um evento maravilhoso, que homenageia um cantor brasileiro. Você pensar um evento para um milhão de pessoas, tudo gratuito, alguém tinha que pagar essa conta. Uma empresa ‘X’ imaginou fazer esse grande festival – já é o quarto ano – e fui uma das pessoas convidadas.
Eu pensei bastante, pensei muito, sabe? Eu pensei muito se aceitava ou não. Mas, faltando quatro dias para eu dar a resposta, fui assistir ao documentário do Sabotage, no qual ele falava que o sonho dele era cantar com a Sandy. Que ele ama a voz da Sandy, acha ela um anjo, uma cantora maravilhosa. Aí eu falei: ‘Obrigado, meu amigo, por me ajudar a dar a resposta, por me ajudar a compreender um pouco mais que música é algo gigantesco’. Aí eu aceitei. Lógico que eu estou a um milhão de anos luz de distância do professor Sabotage. Tanto professor é que me deu essa aulinha a mais. Então, tá tudo certo.
CC: Outra polêmica levantada nesse projeto foram as críticas de Ed Motta, sobrinho de Tim, ao fato de você e Ivete terem sido escolhidos. Disse: ‘Quem oferece é sem noção, é clima de empresa, mas quem aceita é pior ainda, é mau caráter com a história’. Como você lidou com isso?
C: Ele tem o direito de dar a opinião dele. É um grande cantor, uma personalidade do Brasil. Por que iria ter problema, se eu luto para que as pessoas tenham liberdade de expressão? Imagina. Eu venho do rap, cara. O rap nos ensina um monte de coisa, não é isso que magoa a gente, não. O que magoa é ver o povo passando fome. O cara dar a opinião de achar que meu nome não foi uma coisa feliz para estar em determinado projeto, em específico alguém da família dele, alguém que ele ama, ele tem todo o direito, gente. O que me preocupa é ver os caras roubando nosso povo, que sofre e é humilhado no Brasil e fora. Isso que me magoa. Porra, ele foi sincero e deu a opinião dele. Tá tudo certo, cara.
CC: Você pensa em descansar um pouco quando acabar a turnê?
C: Não tem esse papo de descanso, não. Não ligo pra isso, meu filho. A gente veio de uma realidade em que todo dia pedia a Deus, ou o nome daquilo que você acredita, para ter oportunidade na vida. Agora que tem, vai ficar reclamando? Sai fora, meu.
CC: Como é sua relação com a composição? Você tem o hábito de andar com bloco e caneta?
C: Já andei bastante. Agora, gravo tudo no celular. É mais fácil. Mas também, quando perde, perde tudo. Nem tudo aquilo que lhe traz praticidade é o melhor.
CC: Mas chegou a perder alguma canção escrita?
C: Já, claro. Muitas. São 28 anos escrevendo, você perde muita coisa. E muita coisa se perde dentro de você, também. Você não perdeu o papel, mas muita coisa se perde em você. Você vai visitar aquele texto que começou, em cinco, dez anos, é um sopro divino. A arte é algo muito especial, porque lembra que ainda somos seres vivos. Por isso, a arte é tão cultuada, misteriosa e valorizada. Porque lembra que existe um ser humano que ainda está vivo. Que não viramos totalmente máquina.
Por João Pedro Soares, na Carta Capital