Em entrevista ao repórter Raimundo Costa (Valor Econômico, 23/01/2015, EU&FDS, p.6), Eduardo Cunha, o mais proeminente líder do PMDB na Câmara dos Deputados e candidato à disputa pela Presidência da Casa, reagiu abespinhado quando comparado a Frank Underwood, protagonista da série televisiva norte-americana House of Cards (uma lição de ciência política que dispensa a maioria dos cursos de graduação oferecidos pelas universidades brasileiras): “Eu acho isso [a comparação] um absurdo. Eu vi essa série. Existem três diferenças clássicas, ali: o cara é um assassino, o cara é um corrupto e o cara ainda é um homossexual. Não dá para eu aceitar essa comparação. É ofensiva”.
Tem razão o deputado, ele não é o Frank Underwood brasileiro, e ninguém o é, posto que se trata, o personagem, de uma caricatura mediana do político de sucesso dos EUA. Frank é aquele que no Parlamento se levanta do que aqui chamamos de ‘baixo-clero’ e chega às culminâncias do poder. Caricatura e mosaico, pois é um cadinho de defeitos ressaltados para a mais didática compreensão e denúncia. Uma denúncia que vale como um documentário de Michael Moore, ou uma avant-première do filme “Abutre” (presentemente nas telas brasileiras), que mostra a que pode levar a associação de um freelancer sem escrúpulos com um canal de tevê capaz de tudo… pela audiência. É verdade, de igual modo, que tanto o assaltante que se torna repórter quanto a editora de telejornalismo que a ele se associa são a versão exasperada de um jornalismo sem limites. Também são caricaturas, mosaico e síntese dos muitos defeitos de um veículo sem código de ética, à mercê da receita de publicidade que jorra em função da audiência, atraída e cevada por manchetes e escândalos, pelo grotesco e pelo escatológico.
O argumento da série, volto para House of Cards, olha para os EUA, mas retrata também – sem que disso tenham consciência os autores — a vida política brasileira com a precisão de uma fotografia sem retoques.
Mas vai além, e aqui reside seu grande mérito. Retrata os subterrâneos da Casa Branca e do Congresso e invade os intestinos do Poder, onde se mesclam e se entrelaçam a corrupção, o tráfico de influência, a aliança promíscua entre a política e os meios de comunicação – agentes e objeto conscientes de manipulação –, as perigosas relações fonte-repórter, a busca abjeta pela informação, o vale tudo em que tudo é permitido, a prostituição inclusive. Revela o processo de construção e desconstituição de lideranças partidárias, com o concurso de jornais e canais de televisão mobilizados por repórteres em paranóica luta pela ascensão na carreira, e revela, principalmente, a articulação da realpolitik – poder econômico, meios de comunicação (e seus anunciantes), ONGs e ‘entidades beneficentes’, lideranças parlamentares e políticos influentes de um modo geral, a ação ostensiva de lobbies sem limites éticos ou escrúpulos – nas salas e ante-salas do Capitólio e da Casa Branca. E nas alcovas. Toda essa gente, ou seja, o jogo de interesses por ela representado, tem acesso ao ‘Salão Oval’ e influencia o exercício da Presidência da maior potência econômico-militar do mundo, inclusive em suas decisões estratégicas, como a guerra e a paz.
O personagem Frank Underwood – uma ficção, lembremos – simboliza o político de sucesso que, de golpe em golpe de astúcia, livre de qualquer respeito humano ou considerações éticas, caminha em linha ininterruptamente ascendente de sua pequena província sulista até Washington, o Capitólio e a Casa Branca. Seu leit motif é a ambição sem limites. Os meios são o ardil, a astúcia, a matreirice, a conjuração, a dedicação integral às maquinações políticas, a perseverança na busca de seus objetivos pessoais. E um tanto de ousadia e crueldade. O assassinato, o perjúrio, o adultério, a traição são apenas meios que se justificam por estarem a serviço de uma causa legitimadora: o poder. A que preço? Ora, isso não entra em consideração, pois a política, essa política, tem sua própria ética.
Dirigindo-se ao olho-câmera do espectador, ele nos diz: “O caminho para o poder [sua obsessão] é coberto de hipocrisia e crime. Mas não de arrependimento.”
É evidente que esses traços de caráter, que incluem o cinismo, não estão presentes, ao mesmo tempo, em um só político, nem muito menos se diz que todo político, nos EUA ou no Brasil, seja um êmulo de Underwood. Menos ainda que toda mulher se identifica com Claire, sua fria companheira e sócia em todos os empreendimentos e farsas e maquinações. Diz-se que essas deformações de caráter, em doses variadas para cada ente, estão presentes na vida política contemporânea, vivos entre executivos, líderes partidários, jornalistas e empresários.
O que ocorre é que Eduardo Cunha– tanto quanto Renan Calheiros-, representa a média de seus pares.
Gostemos ou não de admiti-lo, Cunha é uma perfeita tradução do Parlamento que aí está, eleito por nós nas condições conhecidas. Não é um acidente, não é um peixe fora d’água (como de certa forma era Severino, um incidente ‘fora da curva’), mas, ao contrário, um bem-acabado produto do meio, sob mais de um aspecto, incluído o modus operandi. “Empresário da política”, como o colega Chico Alencar o definiu, Cunha apenas domina muito bem artes que outros manejam com menor destreza. Com todo o devido respeito por Luisa Erundina, Alessandro Molon, o citado Chico, Glauber Braga e outros tantos: Eduardo Cunha é a cara da maioria.
Os critérios jornalísticos do canal de televisão de Los Angeles, onde se desenvolve a trama de “Abutre” são uma anomalia que a crítica cinematográfica magnifica para melhor denunciar. Sabemos, por exemplo, que nenhum canal brasileiro explora tão intensamente o grotesco, mas sabemos que ele não está ausente de nossas telas. Uma vez mais, trata-se de um mosaico dos muitos defeitos e deslizes éticos que acompanham a televisão em quase todo o mundo.
Assim entre nós. São as regras do jogo, as regras da sociedade de consumo, que entronizou no altar de suas adorações o deus-capital, o deus-lucro, o deus-sucesso. Sociedade que construiu sua própria moral, apartada da moral que pesa sobre o homem comum. A moral que põe na cadeia como vagabundo o trabalhador desempregado, proíbe ao mesmo tempo o pobre e o rico de dormir ao relento e roubar um naco de pão (a sentença, sabe-se, é de Anatole France), mas trata a sonegação de impostos, direito dos poderosos, como um procedimento perfeitamente coerente com as regras do jogo capitalista. Regras como a corrupção ativa, cujo alvo pode ser desde o guarda de trânsito, o diretor da grande empresa ou o alto funcionário público, que precisa ser subornado para que a concorrência cartelizada seja ganha pela empresa previamente eleita no jogo de seus pares. As sobras do superfaturamento seguem para paraísos fiscais, onde alimentam contas insondáveis, depois de aqui financiar eleições, em todos os níveis. São as contribuições declaradas e as contribuições não-declaradas, todas ausentes do Imposto de Renda e das prestações de contas dos candidatos, porque agasalhadas em ‘receitas não contabilizadas’, eufemismo para nomear o caixa dois.
E eis assim exposta a raiz de tudo.
A propósito, no escândalo da ‘operação Lava Jato’, a cena está repleta de empresários e executivos, enlaçados com políticos dos mais diversos coturnos em uma vasta gama de crimes, ainda em apuração.
É o réquiem da grande Política de que nos fala Gramsci. Não mais utopia ou sonho. Não mais D. Quixote. Só Sanchos Panças matreiros, descasados da inocência.
De fato, não há inocentes nem ingênuos nessa política. Na política que está mais para o oportunismo do escudeiro simplório e pedestre do que para a fantasia do cavaleiro anacrônico, o valor é determinado pela equação custo-benefício e a ação é condicionada pelo império das circunstâncias, que tudo absolve e justifica, inclusive a orfandade de princípios.
Absolve quando se trata do vencedor.
Vê-se o fazer político dominado por uma práxis que consagra o poder pelo poder, como meio e como fim. Não se diz que os fins justificam os meios: simplesmente os meios se transformam em um fim.
Toda vez que o político cede ao pragmatismo e reduz seus projetos ao interesse ou à ambição pessoal, toda vez que encerra a política nos limites do curto prazo, toda vez que abandona a esperança de fazer o bem público, a política se reduz a um negócio, a uma traficância, a uma fraude. Porque a política não é, apenas, uma racionalização menor, oportunismo, a busca de resultados práticos e imediatos. Precisa ser a busca do bem público.
Quando vence a realpolitik, a política se transforma em sua contrafação.
Por Roberto Amaral – jornalista, professor e ex-presidente do PSB.
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