Hisashi Konno é membro da JMIU – União dos Trabalhadores Metalúrgicos, Maquinários e de Informática do Japão (Foto: Laldert Castelo Branco/CTB)
Apesar de apresentar um grau de desenvolvimento comparável a poucos países do mundo, o Japão tem seus próprios dramas para superar no universo das relações de trabalho. O mito do trabalhador incansável, produtivo e eficiente perpetuado desde os anos 50, com exemplos cristalizados nas fábricas da Toyota, esconde ao mesmo tempo a dura realidade do “karoshi”: a morte causada pelo excesso de trabalho, que já acometeu centenas de pessoas neste período. Mesmo com o costume de realizarem as “dantaikosho” – as reuniões entre funcionários e patrões que em muitos casos conciliam os interesses das diferentes classes sem a necessidade de enfrentamento -, é inquestionável que a jornada de trabalho excessiva faz parte da cultura japonesa.
A dura realidade trazida pela crise econômica de 2008 trouxe nova complexidade a este conflito, pois deu ao governo conservador no poder mais influência para boicotar direitos trabalhistas e concretizar ideais neoliberais. “A crise americana foi o estopim para uma onda de endurecimento das relações de trabalho no Japão, e terromoto-maremoto de Fukushima, apenas três anos depois, deu ainda mais poder de manobra para o governo”, disse à CTB Hisashi Konno, radiologista e sindicalista do JMIU – União dos Trabalhadores Metalúrgicos, Maquinários e de Informática do Japão. Na opinião do sindicalista, que visitou a sede da CTB Nacional durante a semana passada, as consecutivas tragédias criaram um clima de medo e pessimismo muito favorável aos interesses do capital naquele país.
Ele acredita também que as medidas de austeridade adotadas pelo primeiro ministro liberal democrata, Shinzo Abe, contribuíram não apenas para a maior exploração dos trabalhadores japoneses e falências de pequenos negócios, mas também para a desorganização dos grupos que defendem os direitos do trabalhador. “Desde 2008, notamos uma diminuição de 17% no número de filiados em nossos quadros. Isso enfraquece a nossa capacidade de atuação”, declarou.
A situação tornou-se tão desfavorável que até mesmo os dekasseguis (brasileiros que emigram para o Japão em busca de empregos) tornaram-se mais escassos em território nipônico. Logo antes da crise, chegavam a 320.000 imigrantes nas fábricas pelo país, mas não passam de 180.000 seis anos depois – uma queda de 43% em pouco mais de meia década.
De volta à luta
Uma surpresa que este cenário negativo trouxe em anos recentes foi o evidenciamento das forças de contenda nas relações de trabalho japonesas. Os abusos justificados pela recessão da década de 2000 e a crise de 2008 começam a criar, mesmo dentro de uma cultura estrita com a do Japão, um forte sentimento de descontentamento com a obsessão pelo trabalho. Longe de ser apenas um mal estar momentâneo, este comportamento começou a se manifestar de forma contínua em diversas frentes populares daquele país, com a criação de grupos de defesa jurídica e sindicatos que não se submetem às dantaikosho.
Um dado que registra de forma patente este novo momento é a redução dramática nos casos de karoshi desde o início da crise. “Eles quase não existem mais”, disse Konno sobre o tema. “O Ministério do Trabalho, Saúde e Bem-Estar do Japão se viu obrigado a combater o problema depois das muitas críticas que recebeu durante o início do século. Ele usa a Justiça para evitar que as empresas sobrecarreguem os funcionários a este ponto”, completou.
Estatisticamente, o ministério indeniza entre 20 e 60 famílias por ano em decorrência de mortes súbitas no expediente ou suicídios relacionados à sobrecarga, mas há uma pressão social crescente para que se revejam os dados em torno do tema. Com 90% dos adultos em situação de autodeclarado “desequilíbrio familiar” e 2/3 dos homens cumprindo pelo menos 20 horas mensais de horas extras não remuneradas, os críticos dizem que a atuação ministerial cobre apenas a ponta do iceberg quando o assunto é abuso nas relações de trabalho.
Este novo momento da luta de classes jogou, inclusive, nova luz sobre as diferenças entre as duas maiores centrais sindicais japonesas, a Rengo e a Zenroren. A primeira, maior e mais poderosa, é o que seus opositores chamam de “pelega”: prega uma campanha de colaboração de classes, de submissão aos interesses empresariais. Prefere conversar e pedir com cautela, e por isso mesmo tem parte de seus quadros indicada pela próprio patronato. A outra, ligada ao Partido Comunista japonês e em ascensão neste momento de crise, vai pelo caminho oposto: assume sem dúvidas a luta de classes, enxergando na oposição entre chefes e funcionários o mecanismo inevitável de melhora nas condições profissionais. Naturalmente, investidores e empresários não têm particular amor a esse grupo.
Em um país atravessado pelo pluralismo sindical, em que cada empresa tem seu próprio sindicato (às vezes, até mais de um), a Zenroren tem ganhado novas fileiras de filiados, JMIU entre eles. “Nosso desafio agora é perseguir uma atitude mais presente e ativa frente aos interesses dos empresários, porque mesmo nós temos dificuldades em bater de frente com eles”, explicou Konno. “O Japão chegou a um ponto de desenvolvimento em que é muito difícil declarar greves – a maioria das pessoas resiste à ideia. Isso não quer dizer que elas tenham excelentes condições de trabalho, mas existe uma apatia cultural quanto ao assunto”, completou. A luta dos trabalhadores japoneses acaba assumindo contornos mais sutis, mesmo para grupos que se alinham à luta de classes: demissões são revertidas através do sistema de justiça do país, transferências e lay-offs de pessoal impedidos, comissões mistas organizadas.
Sem soluções econômicas de curto prazo e com pouca experiência na aguerrida luta entre trabalhadores e capitalistas, o Japão ensaia uma retomada modesta do crescimento, sem as promessas de emprego vitalício e altos salários que fazia até a década de 90. O crescimento da Zenroren não é à toa: a central tem sido a voz altiva no combate à superexploração do trabalho, participando em negociações anuais por melhores salários e pelo afrouxamento de horários e metas de produtividade. Em um país recoberto pela lenda do trabalhador incansável, porém, a luta deste novo modo de pensar os sindicatos está só começando, e vai ser longa.
Por Renato Bazan, para o Portal CTB