Como militante e quadro não arrependido do Partido dos Trabalhadores, mais ainda, como militante da esquerda histórica do Brasil que, como milhares de homens e mulheres da minha geração, vem da militância do período anterior a 64, quero compartilhar um debate que está aberto em diversas fontes de elaboração política. Creio que este é o debate mais importante do país, para o que acontecerá nas próximas décadas.
Em blogs, setores de partidos, organizações da sociedade civil, nos movimentos sociais e sindicais, bem como em setores da academia, abre-se o debate sobre uma “Frente de Esquerda”. Frente que possa pensar, no médio prazo, os novos movimentos de bloqueio às reformas neoliberais de segunda geração, que estão em curso na Europa (sociedade de consumo seletivo com setores médios integrados) e já com “sucesso” em países próximos (como a Colômbia e o México) e, também, possa acordar os contornos programáticos do próximo ciclo de lutas nacionais, desta feita mais concretamente contra as desigualdades da nossa estrutura de classes.
Penso que o governo Dilma – que nós do PT temos a obrigação de apoiar e viabilizar – eleito legitimamente dentro de um sistema que obriga concessões programáticas para retomarmos o crescimento e obter mais avanços na inclusão social – produtiva e educacional – esgotará o ciclo de combate às marginalizações mais agudas no Brasil. São exclusões originárias de um sistema de poder que organizou uma sociedade à semelhança da mentalidade colonial-escravista das nossas classes dominantes: a riqueza dos 1% mais ricos do país, em 2012, alcançou mais ou menos 68% da renda declarada.
As reformas feitas até o presente – e mais algumas que ainda poderão ser feitas nos próximos anos – somadas tirarão da miséria e da pobreza doentia, provavelmente 55 milhões de pessoas. É um feito histórico da ampla (e deformada) coalizão de forças, que governa o país neste período, cujo legado passará, agora, para uma fase de disputa. Defender o governo Dilma é, para nós do PT, a defesa deste legado e também a disputa pela sua herança.
Dentro do sistema de controle global do capital financeiro sobre os Estados – através da dívida pública – e do controle exercido sobre a política (através do sistema de financiamento eleitoral e da mídia ideologicamente unitária) é possível avançar, na próxima década, na redução das desigualdades sociais? A pergunta mais clara: é possível substituir (ou fazer acompanhar) as políticas de “humanização” do capitalismo (políticas sociais-democratas limitadas), por políticas de caráter “socializante” (sociais-democratas de esquerda), mesmo dentro do sistema-mundo capitalista, que certamente vai perdurar?
Uma outra pergunta, correlacionada com esta, também se impõe para uma reflexão não-voluntarista: é possível que ocorra uma “reversão” das políticas implementadas até agora, não somente em relação aos avanços democráticos do país a partir de 88, mas também com o aumento da taxa de exploração e de desigualdades sociais e regionais? Para opinar sobre estas questões, uma avaliação da correlação de forças no plano organizativo.
Está formado, hoje, no Brasil um novo e fortíssimo centro político liberal de direita. Ele penetra, inclusive, num espaço significativo do centro democrático, traduzido no mais notável aparato hegemônico, jamais construído pelas elites brasileiras. Ele compõe-se de um conjunto de instituições empresariais e da sociedade civil, empresas de comunicação, setores de partidos e partidos de direita e centro- direita, articulados diretamente com grupos da “alta” intelectualidade na academia, na imprensa e nas organizações empresariais.
Este novo centro atende pelo nome de “Instituto Millenium”. Ele torna irrelevantes os programas e as intenções dos partidos conservadores e de direita no Brasil, porque passa a “produzir”, não só as suas agendas políticas imediatas, cooptar e contratar os seus intelectuais e formadores de opinião, mas também passa a formar novos quadros. Orienta, também, os seus programas de governo, com o paralelo bombardeamento da política partidária, face à identidade (sempre seletiva), que conferem à função pública (toda ela), como leito da corrupção e, aos partidos, como seus canais organizadores.
Esta nova configuração da ação regressiva da direita brasileira está dentro da luta democrática. E ela visa, não só brecar conquistas populares “dentro da ordem”, como dizia Florestan Fernandes, mas também impor – por meios aceitos pela democracia e dentro da democracia política- saídas econômicas, financeiras e políticas, ao seu gosto e uso.
Em outras épocas o fizeram pelas mãos dos militares, contra as “reformas de base” e com a cristalização de uma sociedade de classes profundamente desigual. Como dificilmente, hoje, encontrariam grupos de militares dispostos a novas aventuras, estão se organizando, cada vez mais, para lutar pelos seus interesses pelos métodos democráticos. E o fazem legitimados pela mesma Constituição que dá espaços para as lutas da esquerda e da chamada extrema esquerda.
Remetendo às perguntas, antes formuladas, pode-se dizer que ambas as possibilidades estão contidas no pacto democrático atual. Tanto é possível avançarmos para um novo período de conquistas populares -agora no terreno da redução drástica das desigualdades sociais- como é possível uma regressão neoliberal clássica. As reformas de “segunda geração”, apoiadas numa classe média consumista e hedonista, indiferente à sorte dos miseráveis e dos pobres, constituem o programa mínimo da direita conservadora no Brasil. Para ela, mesmo a social-democracia é “populismo” e atraso, e mesmo a inclusão social, se não for congelada, pode causar problemas ficais para o Estado e na necessidade de enxugá-lo.
Mais uma vez lembro, para que não se caia em subjetivismos, que não se trata de uma conspiração “urdida”. Este novo aparato hegemônico, que substituiu os partidos conservadores e de direita, no jogo político democrático, é uma vontade política organizada para promover ações de Estado, que respondam às necessidade dos fluxos comerciais e financeiros do sistema-mundo global, cujos protocolos políticos e jurídicos não toleram “maus exemplos” ou “exceções”, para integração na sua comunidade mercantil e produtiva. “Morre ou transmuda-te”, como dizia o velho Goethe. Aliás, foi o que Alemanha disse para a Grécia, quando esta cogitou de um plebiscito sobre as medidas ortodoxas que o Governo pensava implementar.
A formação de uma Frente de Esquerda novo tipo, no Brasil, não pode ser impedida pelas distintas visões que os partidos, facções partidárias, personalidades e movimentos de qualquer ordem, tenham sobre o governo Dilma. Sendo formada a partir de uma plataforma mínima comum, para acionar no presente algumas lutas que podem nos unificar, a Frente visará, na verdade, uma mudança na correlação de forças –no interior do campo democrático- para que um governo da União, no futuro, tenha sustentação parlamentar e social para implementar, superada a fase da “inclusão”, um programa radical de redução das desigualdades. A Frente Ampla, do Uruguai, pode servir de analogia, lembrando que analogia não é igualdade, é semelhança.
No presente podemos nos unir -partidos, facções de partidos, personalidades e movimentos de esquerda e centro-esquerda- para reformar o sistema de concessões dos meios de comunicação, regulamentar o imposto sobre as grandes fortunas, proibir o financiamento empresarial dos partidos e campanhas eleitorais, dar progressividade ao Imposto de Renda, elevar a taxação dos ganhos da especulação financeira e abrir novas formas de participação popular, na produção e na gestão das políticas públicas.
Um programa de esquerda, que seja capaz de reestruturar profundamente a sociedade de classes no Brasil, necessariamente deve responder a questões estratégicas mais complexas e difíceis. E este debate sereno deve começar logo, sem que cada um dos integrantes da Frente percam a sua personalidade política ou optem por apoiar, ou não, o Governo da Presidenta Dilma, o que nós do PT o faremos.
Como será financiado o Estado, no próximo período, considerando que são impossíveis taxas mais significativas de crescimento, com o atual endividamento do país e considerando que é impossível qualquer programa econômico-financeiro nacional, desconectado da economia global? Quais os setores privados que “ganham” com estas mudanças, cujos incentivos financeiros e tecnológicos devem dar origem a uma elevação da produção, da produtividade e do emprego? Quais os setores da produção industrial e dos serviços, que serão estatais, públicos ou públicos não-estatais? E que tipo de estímulos são necessários às cooperativas, micro, pequenas e médias empresas, para a promoção de políticas, ao mesmo tempo distributivas de renda e de acrescimento da economia?
Lukács disse, na década de sessenta, que Nixon estava fazendo no Vietnã – apoiado na democracia americana tolerante com a barbárie – o mesmo que Hitler fez, apoiado na violência de Estado, no racismo e na mais pura ilegalidade. O nosso desafio é, dentro da democracia política, promover mais democracia e mais igualdade, enfrentando o novo pacto hegemônico do conservadorismo modernizante no Brasil, cujo nome verdadeiro é neoliberalismo. Um regime de desenvolvimento econômico compatível com a democracia política, mas incompatível com a promoção da igualdade e com a consideração do outro, como meu irmão e meu igual. A esquerda pode pensar uma unidade, ao mesmo tempo, de resistência e avanço. Ou vamos para o retrocesso.
Tarso Genro é governador do Rio Grande do Sul.
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